Livre não é um filme ausente de percalços. Tão tortuoso quanto a própria jornada empreendida pela sua protagonista após a morte da mãe, o mais recente longa do diretor Jean-Marc Vallée sofre do mesmo problema dos seus filmes anteriores (Clube de Compras Dallas e A Jovem Rainha Vitória). A condução de Vallée não tem personalidade, em alguns momentos é confusa e dispersa, contudo existe algo na essência do projeto que, particularmente, me faz relevar esta minha relação “torta” com sua filmografia e abraçar afetuosamente suas personagens centrais, Cheryl e Bobbi Strayed, vividas por Reese Whiterspoon e Laura Dern, respectivamente.
É bem verdade que o foco de Livre é a trajetória de superação do luto percorrida por Cheryl, mas o filme acaba se revelando para o espectador como a história de um laço forte entre mãe e filha, rompido bruscamente por uma tragédia familiar. Apesar de pertencer a um lar centrado na figura materna, Cheryl sempre relutou em ter um destino semelhante ao de sua mãe Bobbi, uma dona de casa que, antes de abandonar o casamento e tomar as rédeas da própria vida, permaneceu durante alguns anos se submetendo às humilhações de um marido agressivo. No entanto, Cheryl não se dá conta de que sua natureza, sempre à frente das convenções do seu tempo, é fruto da vivência e da admiração que tem por sua mãe. Infelizmente, como a maioria de nós, Cheryl só se dá conta disso após a morte de Bobbi e passa por um processo brutal de luto e recomposição, superado somente no isolamento de uma viagem nada convencional.
Por conseguir levar o espectador e sua personagem principal a esta redentora compreensão sobre o processo da perda, Livre foge de um desastre maior. Vallée ainda tem uma dificuldade abissal em conferir foco a sua trama, o longa não consegue fazer uma junção agradável e fluida entre os eventos passados na vida de Strayer e sua jornada como mochileira pela costa do Pacífico. Ainda assim, tem certos elementos que superam qualquer equívoco estético ou falta de traquejo na direção que o filme apresenta. Um dos grandes responsáveis por isso é Nick Hornby, que, com seu roteiro, consegue burlar a precariedade da condução do seu diretor e pontuar em momentos certeiros do longa o verdadeiro propósito de sua história.
E não há como falar dos méritos de Livre sem mencionar o trabalho de Reese Whiterspoon no melhor momento da sua carreira. O filme nos apresenta uma Reese madura, que consegue encarar de frente as demandas emocionais e físicas de uma personagem como Cheryl Strayer. Além de Reese, temos Laura Dern, que, ao lado de Patricia Arquette de Boyhood – Da Infância à Juventude, traz um retrato materno contemporâneo e positivo como representação, o que aliás é um dos grandes méritos de Livre se analisarmos o atual panorama das personagens femininas no cinema. Cheryl e Bobbi são mulheres que, cada uma a seu modo, conseguem ser donas da própria vida, são críveis, de carne e osso, bem diferente das representações femininas comumente vistas em Hollywood.
Livre pode não se impor como cinema por uma técnica bem aplicada ou por uma estética sofisticada, seu diretor ainda está longe de imprimir sua marca como realizador em um filme e continua perdido como “contador” das suas histórias, contudo existe um vetor afetivo que se impõe diante desses problemas. Claro que precisaria de muita lapidação para transformar Livre em mais do que uma pedra bruta com seu valor intrínseco, mas o longa consegue ser poderoso, sensível e humano em seus grandes momentos.