A Marvel vem construindo uma sólida trajetória apostando no seu universo cinematográfico que gravita em torno do projeto Vingadores. Não deixa de ser admirável a constância na qualidade das suas produções e a maneira como o estúdio conseguiu emular uma lógica própria da narrativa seriada a sua filmografia, com universos distintos que são conectados e se encontram em dado momento para agir contra ameaças maiores. Acontece que, por outro lado, não há muito risco por parte do estúdio, há apostas seguras em um “modo Marvel de fazer cinema” mesmo quando as produções procuram ir um pouco além dos esquemas, como é o caso de Capitão América: Guerra Civil, por exemplo. Assim, o que se vê são filmes corretos e que cumprem de maneira digna a função de entreter o espectador, mas não deixam de vir com aquela sensação de déjà vu sobretudo quando conferimos mais de um desses títulos a cada ano.
Doutor Estranho vai por esse caminho. O filme é anunciado como uma possibilidade de explorar horizontes mais ambiciosos e nunca antes tentados pelo estúdio, que envolve universos paralelos, misticismo e magia. Acontece que ainda que visite esse “estranho”, tudo ainda está na zona de conforto. No longa, Benedict Cumberbatch (O Jogo da Imitação) vive o Dr. Stephen Strange, um renomado neurocirurgião que perde o controle das mãos após sofrer um grave acidente de carro. Diante de uma descrença na cura pela via da medicina, Strange recorre a um grupo que parece promover a cura através de forças místicas. Submetido a um treinamento no Katmandu, Strange acaba adquirindo poderes e deve decidir se os usará para se recuperar ou para salvar o mundo de ameaças terríveis que só ele pode conter.
Dirigido por Scott Derrickson (de O Exorcismo de Emily Rose e A Entidade), Doutor Estranho aproveita em certa medida o histórico do seu realizador ao explorar visualmente o oculto. O filme é tecnicamente eficiente, conseguindo construir de maneira impressionante suas viagens pelos múltiplas dimensões visitadas por Strange. Como o protagonista, Benedict Cumberbatch é a escolha certa e parece uma mistura de Bruce Wayne e Tony Stark com poderes mágicos dando vida a um milionário entorpecido pelo ego, mas também por uma tragédia pessoal. Ao lado dele está um elenco de coadjuvantes dos sonhos formado por Rachel McAdams (Spotlight) e Chiwetel Ejiofor (12 Anos de Escravidão), que não têm momentos de especial destaque, mas conferem um certo respeito a fita. Fora Cumberbatch, Tilda Swinton (Precisamos Falar sobre o Kevin) talvez seja a presença mais forte do longa como a Anciã.
De uma maneira geral, Doutor Estranho é um filme correto. Ele oferta divertimento na medida certa, não agride a inteligência do espectador, consegue costurar uma narrativa linear e sem furos e aplicar seus recursos visuais sem maiores afetações, sendo este o seu departamento mais brilhante. É claro que o longa recorre aos recursos de praxe da Marvel Studios para “seduzir” suas plateias: os momentos mais dramáticos ou de ação do filme são intercalados por piadas ou referências ao universo pop, o que faz com que, para o bem e para o mal, nada tenha tanta gravidade; a trajetória do personagem é praticamente a mesma de qualquer outro super-herói; há cenas pós-créditos (duas, na verdade) e o vilão, mesmo sendo interpretado pelo ótimo Mads Mikkelsen (A Caça), deixa a desejar. O impulso de obedecer a todo esse protocolo faz com que o filme funcione sob uma lógica conflituosa: ele parece desejar adotar um tom mais adulto que destoa do universo Marvel até então, mas recua em prol de uma chave de diálogo mais adolescente ou infantil.
Assim, apesar de manter o padrão de excelência do estúdio, não dá para deixar de constatar que Doutor Estranho surge como uma repetição envolta por uma embalagem bonita e aparentemente nova, mas que não deixa de ser uma embalagem. O conteúdo é o mesmo de sempre. E se a Marvel parece estar se retroalimentando mesmo quando aparenta oferecer algo novo, a coisa fica ainda mais nebulosa para os fãs de filmes desse nicho quando constatamos que não há uma concorrência, haja vista as tortuosas tentativas da Warner de levar o universo dos heróis da DC Comics para o cinema com filmes vacilantes como Batman vs. Superman: A Origem da Justiça e Esquadrão Suicida. Doutor Estranho ao menos não é catastrófico, mas é narrativamente burocrático, cheio de esquemas que já são velhos conhecidos do público e que não colaboram com o viço do projeto.
É possível que tudo isso seja um reflexo do processo de saturação do próprio nicho cinematográfico. De 2000 para cá as adaptações de quadrinhos de super-heróis para o cinema foram tantas que talvez seja interessante mexer um pouco nessas peças. Faria bem a Marvel esgarçar mais as possibilidades dos seus múltiplos universos, sair da zona de conforto e dos esquemas narrativos, levar os seus personagens realmente ao extremo, sem que as decisões corajosas dos seus filmes sejam abafadas por piadinhas adolescentes ou com cartas de conciliação do Capitão América para o Tony Stark. Talvez seja um pouco de risco e experimentação que esteja faltando para esse nicho de produção sair da oferta do “arroz e feijão” de sempre, o que, confesso, tem tirado um pouco da magia e do encanto que ele oferecia tempos atrás.
Promover a revolução que o próprio estúdio prometera e que o hype dos meios de comunicação anunciaram assim que a produção do longa foi engatada, Doutor Estranho não promove. Alçar os filmes de super-heróis a padrões cinematográficos que os colocaram em pé de igualdade com cânones do campo só cineastas como Richard Donner (Superman – O Filme), Tim Burton (Batman: O Retorno), Bryan Singer (X-Men 2), Sam Raimi (Homem-Aranha 2) e Christopher Nolan (Batman: O Cavaleiro das Trevas) conseguiram. Nesse sentido, esse projeto Marvel Vingadores conseguiu sair da zona de conforto e testar novas possibilidades de tom e ousadia narrativa em Capitão América: Soldado Invernal, que soube inclusive entender as demandas específicas do seu personagem.
Doutor Fantástico, no máximo, conseguiu ser técnica e plasticamente embasbacante, além de uma matinê bastante agradável. E também não há mal algum nisso. É um propósito bastante honesto, por sinal. Acredito ser saudável esse exercício de reflexão proposto nesse texto não só para refletir sobre os próprios rumos desse tipo de produto que estamos analisando, mas também levar a discussão para além das impressões simplistas do “gostei” ou “não gostei”. Entre esses extremos existe um universo, tão numerosos quanto aqueles que vimos no próprio Doutor Estranho. É produtivo esmiuçar e problematizar cada um deles. Assim produzimos e fruímos melhor os filmes.
Assista ao trailer do filme: