Em um momento crucial de Capitão América – Guerra Civil, sendo mais específico, o duelo final entre os dois personagens centrais desse filme (o Capitão América e o Homem de Ferro) parte da essência da clássica e cultuada série de HQs Guerra Civil da Marvel é transposta em um filme que não faz questão alguma de prestar obediência (e nem deveria ou teria a obrigação de fazer isso) aos quadrinhos. Existem dois modelos de condutas bem claros que são postos em conflito e, nesse ponto do texto, inevitavelmente, recorrerei a SPOILERS, portanto, SE NÃO ASSISTIU AO FILME, NÃO CHEGUE AO FINAL DESSE PARÁGRAFO INTRODUTÓRIO. O Homem de Ferro questiona o status de herói do Capitão América, atribuindo a sua fama a uma simbólica indumentária e ao seu poderoso escudo, que, por sinal, fora feito com o dinheiro e a tecnologia do seu pai, afirma Stark. Imediatamente, Steve Rogers abandona o seu escudo e posteriormente, em uma carta, os próprios Vingadores (mesmo que momentaneamente, é verdade), deixando claro que o que o torna um herói não é o escudo, a roupa ou mesmo o reconhecimento público conferido pela simbologia em torno do Capitão América ou do status legal de líder dos Vingadores, mas sim a sua conduta ética. Esse talvez seja o ponto máximo em que Capitão América – Guerra Civil consegue levar a Marvel Studios a um patamar um pouco acima do perfil burocrático que os seus filmes seguiram até então, permitindo discussões tão interessantes quanto aquelas que foram provocadas por Guerra Civil nas HQs.
O FILME SEM SPOILERS AGORA. E Capitão América – Guerra Civil segue esse tom. O filme está longe de seguir a urgência das HQs Guerra Civil, que trazia discussões sobre a conduta dos EUA pós-11 de setembro em sua atuação contra o terrorismo numa oposição entre segurança (defendida pelo Homem de Ferro) e liberdade (Capitão América) – e desculpem as comparações, mas é inevitável, o próprio filme se submete a esse risco quando se intitula Guerra Civil. Essa corajosa discussão política, contudo, é diluída no longa, que não toma decisões tão enérgicas assim sobre o futuro dos seus personagens quanto seu vínculo prometera. No filme dos irmãos Russo, existe um conflito ideológico em “carne viva”, mas as motivações são muito mais de ordem pessoal, sobretudo pelo ponto de vista do Tony Stark.
E antes que alguns comecem a virar o nariz para o que escrevo sobre o filme, problematizar esse aspecto da obra, que, na verdade, acaba externando um “calcanhar de Aquiles” de toda a produção da Marvel Studios nesse projeto Vingadores desde o longa Homem de Ferro em 2008, não implica que este que vos escreve não reconhece as qualidades desse longa em especial e de tudo a Marvel e seus produtores fizeram até aqui. Acontece que, o resultado de Capitão América – Guerra Civil, ainda que consiga ser mais corajoso, maduro e com personalidade do que outros trabalhos da Marvel Studios, é obstacularizado pelo receio que os envolvidos sempre têm de produzir uma obra que desagrade um nicho do público. Os filmes são homogêneos e não tem muita coragem para tomar decisões extremas que, de fato, possam elevar o tom de urgência de seus temas e modificar drasticamente o curso dos seus personagens, levando-os a mudanças mais radicais. Mesmo em Capitão América – Guerra Civil, talvez o longa que assuma as decisões mais enérgicas do estúdio com relação às dinâmicas dos seus personagens, qualquer movimento além do esperado para um filme Marvel Studios é inibido por alguma piada ou mesmo um happy end.
Manter esse tom é errado? Não necessariamente, e talvez essa reflexão particular que faço em formato de crítica seja uma questão de “paladar” cinematográfico do autor desse texto. Acontece que quando temos uma linha ascendente de longas que demonstraram desejar ir além do “feijão com arroz” da Marvel Studios (um “feijão com arroz” bom, mas que não deixa de ser um “feijão com arroz”) como Capitão América 2 – Soldado Invernal e, até mesmo, Guardiões da Galáxia, Homem-Formiga e Capitão América – O Primeiro Vingador, longas que permitiram, em diferentes tons, aos seus diretores irem além do manual Marvel de fazer filmes e imprimiram uma certa personalidade aos projetos, cria-se uma expectativa grande para um longa com a dimensão prometida em Capitão América – Guerra Civil, que não deixa de esgarçar as possibilidades dramáticas do universo, mas que também é muito tímido em determinados momentos nos quais visivelmente poderia colocar a produção do estúdio em outro patamar. Acredito que essa problematização/ reflexão seja importante para que a gente possa sair dessa polarização pobre que costuma dominar a discussão sobre o cinema nos últimos tempos, simplificando as coisas entre o “gosto” ou “não gosto”, entre aqueles que odeiam e amam sem concessões os filmes. Esse tipo de exercício reflexivo, acredito, é interessante e bem-vindo, enriquece o debate e nossa percepção não apenas sobre a obra em si, mas sobre o que ela representa e traz do seu próprio modelo de produção.
Sobre o filme em si, Capitão América – Guerra Civil é uma experiência bem divertida e é interessante notar como os irmãos Joe e Anthony Russo conseguem costurar a trama do longa e desenvolver as demandas requeridas pelo seu grupo numeroso de personagens sem deixar a desejar no tratamento de nenhum deles, mesmo aqueles que estão no filme como alívio cômico somente, como é o caso do Homem-Formiga de Paul Rudd. Claro que há um realce no tratamento que os realizadores dão ao Capitão América e ao Homem de Ferro (sobre esse último, talvez a contribuição seja muito benéfica, tendo em vista o estado automático que o personagem andava de uns tempos para cá), mas há um tratamento interessante para a Viúva Negra, o Soldado Invernal, o Falcão e até para os novatos Pantera Negra e Homem-Aranha, introduzido nesse quadro de personagens de maneira resumidamente brilhante. Os diretores, assim como fizeram em Soldado Invernal, também conduzem muito bem as sequências de ação do filme, fazendo o espectador compreender o movimento dos seus personagens em cenas dinâmicas e marcadas por uma forte interação entre eles, além de usarem com eficiência os recursos tecnológicos à disposição de um filme desse porte.
Em suma, Capitão América – Guerra Civil é um filme que valeu a pena esperar. É certo que chega aos cinemas coberto de expectativas e com um boca-a-boca exagerado que o anuncia como “o melhor filme de super-heróis já feito”, “o melhor filme da Marvel Studios”, “o melhor filme do ano” etc. Particularmente, e em um primeiro contato (nenhuma palavra sobre obra alguma pode ser definitiva e está sempre sujeita a revisões), não vejo o filme se enquadrar em nenhum desses títulos. É um longa marcado pelos momentos mais dramáticos e pelas decisões mais extremas do estúdio com relação aos seus personagens, muito eficiente técnica e narrativamente, mas que também sofre por ser uma história que tem o potencial de ir além do que realmente foi e que não avança mais em prol de todo um manual de produção cinematográfica que é muito cômodo aos envolvidos. Tem infinitas qualidades, mas também é um filme cujos falhas são reflexo de uma política diplomática da Marvel Studios de atender a várias demandas ao mesmo tempo (às do público nerd, dos cinéfilos, do espectador esporádico de cinema etc.) que, curiosamente, é responsável pelos seus méritos. Entrega uma narrativa “basicona” que vai um pouco além do que a gente está acostumado a ver eles realizarem, mas que também não é marcada por tanta coragem assim quanto se esperava, sobretudo depois de um filme tão interessante quanto Capitão América 2 – O Soldado Invernal.