Cabeça de Nêgo

Crítica: Cabeça de Nêgo (Globoplay)

4.5

Há todo um percurso progressivo realizado por Déo Cardoso neste longa-metragem. Iniciando com uma ambientação que localiza o espectador, existem duas atmosferas instaladas aqui em Cabeça de Nêgo e ambas funcionam corretamente. A primeira é a da rotina escolar, com colegas que brincam na sala, enquanto outros colam cartazes pelos muros da instituição. É notável que em pouco tempo de projeção que aquele é um espaço da juventude, mas também de lutas. A partir deste ponta pé inicial, Cardoso deixa nítidos os traços marcantes das personalidades das personagens, ainda que estas sejam até coadjuvantes.

A segunda construção é a do que cerca aquela realidade escolar, para além de cálculos, interpretações de textos e traduções: a opressão racial e social que os estudantes passam todos os dias e que é “normalizada” por muitos. Mais ainda, o diretor e roteirista insere o racismo e a luta contra ele, vinda de alunes e de algumas (poucas) professoras.

É neste cenário jovial, mas repleto de conflitos graves, que são diminuídos por quem deseja manter seus privilégios – dentro ou fora do colégio – é que Déo conta a sua história. A maneira como a narrativa consegue ampliar a tensão durante a exibição é notória.

Cada evento vai se desdobrando em novos acontecimentos, sem que o conflito central se perca em Cabeça de Nêgo. Neste contexto, seria até compreensível que a quantidade de informação pudesse afetar o enredo, gerando uma investigação e cuidados menores com algum ou mais de algum elemento. Todavia, tanto o protagonista Saulo (Lucas Limeira) quanto quem o cerca, ganha contornos e são bem trabalhados. O texto é direto e, por isso, consegue delinear com vigor as características das personalidades das personagens. Outro fator que contribui para a rápida percepção sobre estas figuras ficcionais mostradas na tela é que, feliz e infelizmente, elas existem, na vida real.

Cabeça de Nêgo

Há aqui posto o jogo de poder do diretor da escola, que tem planos escusos com partidos políticos, versus a garra, a militância e a luta antirracista e de estudantes do ensino público no Brasil. Talvez seja por isso que quanto mais a projeção avança, mais intensa ela precise ficar. Déo é certeiro em aumentar o caos e a suspensão a cada sequência.

Toda esta tensão e angústia somente são quebradas por algumas questões que incomodam, mas que não comprometem a totalidade do filme. Em certas sequências as atuações são artificiais e os diálogos expositivos. O curioso é que são passagens que não são tão cruciais para o desenvolvimento da trama, porém estão ali porque o realizador as achou relevantes para a obra.

Assim, elas poderiam ser mais orgânicas, para que funcionassem e não destoassem do restante, ou serem retiradas. Outro fator preocupante está no som. Em algumas sequências, como na conversa da professora Elaine (Jéssica Ellen) com suas alunas, o áudio possui um eco, que causa estranhamento em quem assiste. Mas, com todo o conteúdo presente na produção, o que ela traz como discussão, e como a traz, garante uma boa sessão. Cabeça de Nêgo merece ser visto e revistado sempre, pois ele tem uma importância intensa para o audiovisual, para a cultura brasileira. Além de ser um longa feito no Nordeste, de ser composto por uma equipe majoritariamente negra, por tratar de violência policial, opressão do Estado e racismo estrutural, o filme tem uma decupagem inteligente, que fomenta o clima de tensão e aumenta a compreensão dos sentimentos e pensamentos de cada personagem.

Direção: Déo Cardoso

Elenco: Lucas Limeira, Jéssica Ellen, Val Perré

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