Um longo, doloroso e intrincado relato pessoal. Assim pode ser definido, em curtos termos, o documentário Bruxas, escrito e dirigido por Elizabeth Sankey. Produzida pelo streaming Mubi, a obra mostra a representação das bruxas no cinema e no imaginário ocidental, e expõe como a história daquelas mulheres se conectam com traumáticas experiências de depressão, ansiedade e psicose pós-parto enfrentadas por Sankey e outras mulheres do Reino Unido contemporâneo.
Além do caráter instrutivo, ressaltado nas detalhadas exposições das experiências das mulheres e nas falas de médicas e psiquiatras, Bruxas, talvez até sem intenção, faz uma pequena ode ao cinema. Por meio da colagem de cenas de filmes como A Bruxa (2015), O Bebê de Rosemary (1968), As Bruxas de Eastwick (1987), Possessão (1981), entre outros, a narrativa mostra que imagens gráficas de horror funcionam como relevantes elementos alegóricos para diferentes infortúnios que acontecem no mundo real. Embora as metáforas no universo do terror estejam longe de serem novidades, a exposição das referências no documentário é feita com primor e se conectam com naturalidade aos tristes relatos das mulheres sobre seus problemas após a gestação. Assim, graças à inventiva montagem, Bruxas confere importância e maturidade às obras destacadas.
Obviamente é sandice acreditar que a arte tem poderes terapêuticos que conduzem espectadores, através de experiências imersivas, à plenitude ou ajudam na cura como auxiliares de medicamentos convencionais da medicina. Não, não são os livros e filmes que nos conduzirão à zona de plenitude. E é claro que Sankey não caiu na armadilha de atribuir ao universo artístico esta perspectiva ingênua e na história, as psiquiatras são responsáveis pelas investigações das ocorrências e longos tratamentos. De todo modo, não é exagero pontuar que foi graças ao profundo interesse pela história das bruxas e a curiosidade por aquelas mulheres, representadas como feiticeiras malignas de feições aterradores ou como garotas rebeldes e outsiders na sétima arte, que a artista racionalizou a intimidade feminina na segunda década do século XXI.
Ao longo do século XVI, milhares de mulheres foram queimadas por desobediências diversas. Eram consideradas bruxas aquelas tidas como emocionalmente instáveis que causavam assombro em contexto civilizacional marcado por desenvolvimento científico precário, forte opressão de gênero e apego ao sobrenatural. Além das “histéricas”, mulheres que faziam uso medicinal de ervas e as independentes também recebiam a alcunha desta figura que ficou cravada no imaginário infantil como uma idosa de roupa preta que voava na vassoura e por vezes preparava receitas com feitiços em um caldeirão.
Certamente muitas daquelas consideradas “endemoniadas”, que assustavam as comunidades europeias no transcorrer da idade moderna, sofriam de depressão pós-parto. Se em tempos remotos o zelo com figuras femininas era inexistente, até hoje o debate sobre saúde mental sofre entraves por uma série de estigmas ainda fincados do papel das mães na sociedade. Em determinada passagem do documentário, por exemplo, Sankey afirma que uma boa mãe é imaculada e “nunca fica estressada”. É percetível compreender o quão pavoroso é observar-se sem estes valores socialmente carimbados em mulheres que acabaram de ter um filho.
Eficiente em estabelecer vínculo a respeito das reflexões da saúde mental de mulheres em tempos e contextos culturais tão distantes, o documentário também acerta na direção de arte. Ainda que não sejam amedontradores, os quartos em que Sankey e as entrevistadas relatam seus traumas, evocam os seus desconfortos e instabilidades emocionais, graças à pontual variação entre claro e escuro da iluminação e aos objetos cênicos escolhidos.
Por fim, Bruxas tematiza a importância de conexões. No tempo das fogueiras, também eram perseguidas as mulheres responsáveis por cuidados. Parteiras e vizinhas acolhedoras eram ameaças a ordem vigente. Hoje, há temor em expor desejos sombrios, medos de rejeição e de punição, ainda que não seja no fogo.
A arte pode até não ser a cura, mas é uma chave importante para reflexão e autoconhecimento. Sankey sabe disso.
Direção, roteiro e edição: Elizabeth Sankey
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