Benedetta

Crítica: Benedetta

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Existem poucos realizadores dispostos a ultrapassar os limites e provocar tanto a audiência quanto Paul Verhoeven. Aos 83 anos, Verhoeven consegue ser mais ousado do que a maioria dos seus colegas mais jovens em tempos tão moralistas no que tange a relação do público com a arte. Seu mais recente longa, Benedetta, é mais uma prova dessa habilidade de um realizador que segue disposto a esgarçar as relações do público com sua obra. Como no seu longa anterior, o controverso Elle, Verhoeven atravessa a trama de Benedetta com sentimentos diversos, complexos e, por vezes, contraditórios, culminando em uma experiência singular.

Em Benedetta, Verhoeven se apropria da biografia da freira Benedetta Carlini para compor uma história que mistura religião e sexualidade, uma combinação sempre explosiva nas telas. Benedetta foi entregue por seus pais muito cedo para o convento entre o século XVI e XVII e acreditava piamente que tinha uma relação íntima com Deus, assumindo-se como santa, inclusive, por suas visões. Quando se torna abadessa do convento, Benedetta sente ter passe livre para estabelecer de forma mais íntima uma relação antes reprimida com a noviça Bartolomea. Em dado ponto da história, a relação entre as duas é descoberta por instâncias poderosas da Igreja e ambas passam a ser perseguidas. Ao mesmo tempo, a percepção pública de Benedetta como uma santa se fortalece em uma população oprimida pelo medo da peste e da chegada de um cometa na Terra.

A partir dessa história singular, Verhoeven cria um filme que testa o tempo inteiro a natureza dos sentimentos do espectador por sua protagonista. Se de um lado, a crença na santidade e o poder que a credulidade de terceiros nela traz para Benedetta uma postura tirânica e desconfianças sobre sua própria sanidade, além da segurança para viver sem culpa uma relação homossexual, por outro, quando a divindade da freira é posta em dúvida, somos apresentados a uma faceta ainda mais perversa da Igreja representada pelos homens que sempre a governaram. Nesse segundo momento, tendemos até mesmo a aderir por completo ao ponto de vista de Benedetta sobre os eventos. A capacidade que o filme tem de lidar de maneira tão maliciosa com a moral do espectador e, consequentemente, com a interpretação que temos dos eventos narrados só mesmo Verhoeven tem coragem de fazer nas telas de modo tão autenticamente provocador.

Benedetta

Toda a jornada do público pela história é costurada com astúcia pelo cineasta. Da maneira como ele retrata o contexto histórico do filme com a explosão da peste pela Europa e a chegada de um cometa na Terra, cenário de fim dos tempos mais do que propício para a instauração de uma atmosfera febril propícia ao aparecimento de falsos profetas, até os signos e representações que permeiam a trama, o que inclui, por exemplo, um Jesus Cristo que oscila entre o amante castrador e o cavaleiro salvador para a protagonista. Localizando-se em extremos, o longa também está sempre disposto a construir suas personagens como figuras dúbias, oras agindo como vilões, sobretudo quando detém poder na instituição, outras se transformando em vítimas da própria Igreja onde corroboraram com a manutenção de preconceitos e dogmas que em dado momento se voltam contra elas.

Não é um filme de meios termos. Benedetta tende a polarizar sua recepção. Nada mais natural. Como toda a filmografia do realizador, o longa é claramente feito por Verhoeven para gerar esse tipo de inquietação, todos os seus elementos estão dispostos da maneira como o cineasta coloca justamente para isso. É por conta desse programa de efeitos que Verhoeven ocupa espaços tão extremos mexendo com instituições  e temas marcados por percepções públicas aparentemente sólidas. No caso de Benedetta, temos uma carta declarada de Verhoeven sobre a humanidade e a maneira esquizofrênica com a qual ela lida com o poder, a fé e a sexualidade alheia (e própria) desde sempre, levando todos  para um cadafalso com expectativas nulas de redenção. Com o filme, o diretor demonstra mais uma vez como consegue desestabilizar discursos e visões de mundo aparentemente estáveis, cumprindo no final das contas um papel que não deveria ser negado a arte.

Direção: Paul Verhoeven

Elenco: Virginie Efira, Charlotte Rampling, Daphne Patakia

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