Até os Ossos

Crítica: Até os Ossos

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Em Até os Ossos, Luca Guadagnino aposta no romance entre dois canibais para construir um filme que tensiona o tempo inteiro sensibilidade e violência. Na história, Maren (a excelente Taylor Russell) é uma jovem que descobre desde cedo uma vontade incontrolável de se alimentar de carne humana. Abandonada pelo pai, Maren vive à margem da sociedade e acaba encontrando companhia em Lee, um rapaz que também é canibal e que, assim como ela, teve que aprender desde cedo a lidar com a solidão que sua condição lhe traz. Assim, todo o contexto do canibalismo, através desses personagens marginalizados pela sociedade em função das suas próprias condições, serve para Até os Ossos compor um conto cheio de sensibilidade sobre a solidão, ou o lugar sombrio e melancólico para onde ela nos leva, e a importância do encontro e da partilha com um semelhante para nossa saúde e nosso desenvolvimento pessoal.

Em mais um flerte com o gore (o diretor foi responsável pelo remake de Suspiria), Luca Guadagnino faz um filme cheio de sensibilidade como seu popular Me Chame pelo seu Nome trazendo para o centro do seu conflito um casal principal que representa estratos sociais apartados do convívio em sociedade. Maren e Lee sentem vergonha e repulsa por se alimentarem de carne humana, aliás, são poucos os canibais apresentados no filme que convivem em paz com esse traço de identidade dado pela própria natureza. Nesse sentido, Até os Ossos serve para Guadagnino falar sobre a rejeição em diversas esferas: social, familiar e, claro, a auto rejeição. Aqui, o encontro amoroso entre Maren e Lee é uma espécie de tábua de salvação para uma vida aparentemente condenada a condições precárias de existência.

No filme, Guadagnino explora o gore de maneira ostensiva. O diretor não poupa sangue e vísceras em cada cena na qual os canibais atacam suas vítimas. No entanto, o cineasta provoca e explora bastante todas as reverberações desse seu flerte com o fantástico em uma realidade prática. Assim, ao mesmo tempo que Até os Ossos causa asco com suas cenas nas quais os canibais parecem urubus em torno dos corpos que lhes servem de alimento, também é capaz de muita ternura e empatia ao construir dores muito palpáveis para seus protagonistas. O sentimento de solidão e os conflitos morais em torno do canibalismo presentes em toda a jornada de Maren e Lee são críveis para o espectador, é possível senti-los e se colocar no lugar desse casal.

Até os Ossos

Dada a fama de Timothée Chalamet e sua parceria pregressa com Guadagnino em Me Chame pelo seu Nome, o ator tem sido o chamariz da campanha de marketing do filme, mas é a atriz Taylor Russell quem se destaca nesse mais recente longa do diretor. Chalamet está ótimo como Lee, uma escalação impecável, não resta dúvidas, mas a alma e o coração de Até os Ossos é Taylor Russell, revelada para o grande público no drama As Ondas, pouco visto no Brasil por problemas de distribuição. A atriz desenvolve gradativamente e com muita maturidade toda a jornada da sua personagem no filme. Há participações especiais de nomes conhecidos -Michael Stuhlbarg e Chlöe Sevigny, por exemplo -, mas cabe uma menção de destaque entre os coadjuvantes de Até os Ossos para Mark Rylance. O ator interpreta Sully, um canibal que cria uma perturbadora afeição por Maren desde o início da história, levando a relação a extremos ao longo do filme.

Até os Ossos é um filme comprometido com a experiência emocional do espectador, mas não se entrega a caminhos óbvios. Flertando com o horror, o romance entre canibais de Luca Guadagnino é mais um ótimo momento de um cineasta que depois do sucesso de Me Chame pelo seu Nome parece não querer se reduzir a um diretor que mira no gosto das grandes premiações, mas que se desafia em histórias que, até então, parecem muito diferentes umas das outras, conversando com gêneros não tão consagrados assim pelas instâncias mais visadas de consagração.

Direção: Luca Guadagnino

Elenco: Timothée Chalamet, Taylor Russell, Mark Rylance, Michael Stuhlbarg, Andre Holland, Chloë Sevigny, David Gordon Green, Jessica Harper

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