Em Aos Nossos Filhos, Maria de Medeiros retorna à direção de filmes através de uma história repleta de conflitos entre mãe e filha ambientada no Brasil, mas também cheia de nós sociais próprios do país. No longa, Marieta Severo vive a diretora de uma ONG que dá suporte a órfãos soropositivos. A personagem é surpreendida por um professor universitário interessado no seu passado como presa política da ditadura militar. Além disso, a protagonista vive em pé de guerra com a filha, papel de Laura Castro (co-autora do roteiro), uma advogada que estuda para se tornar juíza e tem tentado sem sucesso com a esposa uma gravidez por inseminação artificial. Mãe e filha nunca se entendem, seus interesses sempre parecem opostos, e o propósito desse drama familiar de Medeiros é tentar aparar as arestas entre essas duas personagens.
Aos Nossos Filhos é uma mistura difícil de entender. O longa insere sem sucesso suas personagens representantes de uma classe média em contextos que extrapolam as querelas privadas das duas gerações de mulheres vividas por Marieta Severo e Laura Castro. Toda sorte de problemas sociais do nosso país surge como panorama desconexo na história: homofobia, segurança pública, ditadura militar, racismo, orfandade, AIDS etc. O resultado não é dos melhores, sobretudo porque todas estas questões não conseguem dialogar minimamente com a vocação melodramática da história, ou seja, seus segredos e relações familiares mal resolvidas. Recentemente, com Mães Paralelas, Pedro Almodóvar mostrou como essa mistura improvável de inquietações sociais nas raízes da formação de um país e drama familiar podem se interseccionar formando uma obra primorosa, revisionista na própria filmografia do diretor. Aos nossos filhos soa propor algo parecido, mas a execução passa longe do êxito do mais recente trabalho de Almodóvar.
Temas como homofobia, ditadura militar e segurança pública são jogados de qualquer forma na história. Na maioria das vezes, não dá para entender a conexão que as realizadoras estão tentando estabelecer entre as causas sociais que levantam e a narrativa familiar que está sendo construída. Como resultado, há cenas que escancaram a mecanicidade de alguns esforços e o deslocamento de inúmeros eventos na história, como os constantes tiroteios na favela onde a personagem de Marieta Severo trabalha ou um beijo entre o casal formado por Laura Castro e Marta Nobrega em uma loja quando elas são questionadas se são irmãs por uma vendedora.
Em Aos Nossos Filhos, é velado o descompasso de uma burguesia cheia de bandeiras a defender, mas que anda sempre ensimesmada em questões pessoais: o filho perdido, a reprodução assistida que não dá certo, o divórcio iminente…O mergulho em tópicos amargos da sociedade brasileira parece uma forma de ingenuamente expurgar a culpa de fazer parte de um sistema opressor que os personagens tanto criticam e combatem. Acontece que o longa em momento algum demonstra consciência ou age de forma mais enérgica sobre o assunto. A discussão parece escapar da própria sensibilidade do longa, que sequer reflete conscientemente a respeito das suas contradições evidentes. Tal esforço parece exclusivo do espectador.
Em alguns momentos, o filme estabelece pontos de reflexão originais que talvez devessem ser melhor explorados pela história. Aos Nossos Filhos desmistifica um pouco o imaginário de que o preconceito pertence apenas às bocas e mentes conservadoras, trazendo de um lado uma vítima da ditadura militar que tem um trabalho sério comprometido com soropositivos, mas é extremamente homofóbica e, do outro, a própria filha, uma jovem lésbica cheia de ideias equivocadas sobre portadores do HIV, por exemplo. Acontece que nada é muito desenvolvido nessa seara e a querela entre as personagens fica por isso mesmo.
Diante de todo o mosaico ofertado pelo drama, o público fica à deriva com uma série de questionamentos não respondidos pela experiência de assisti-lo: qual a leitura que esse filme faz das suas personagens e da situação em que elas estão inseridas? É uma crítica ao comportamento de uma classe social? Ele adere ao olhar das suas protagonistas para aquela realidade? É tudo incomodamente dúbio. Como protagonista do longa, Marieta Severo até consegue conferir alguma dignidade para a história até mesmo quando algumas cenas soam constrangedoras (o pesadelo do jacaré ou o temor da barata voadora dentro de casa, por exemplo), mas nenhuma atriz aplicada em cena consegue suprir tantas faltas nas bases dramáticas da narrativa.
Quando não se está preparado para mergulhar na complexa teia de problemas sociais que forma o Brasil (e tudo bem não estar, nosso país é mesmo algo difícil de se entender), o melhor a fazer é se dedicar àquilo que está ao nosso alcance. O que as realizadoras dão pistas de executar melhor nessa história são os conflitos familiares, os dramas privados entre mãe e filha, mas tudo fica ofuscado por causas e dívidas históricas que só inflam e dispersam a obra de um objetivo mais econômico e localizado que lhe conferiria um resultado melhor.
Direção: Maria de Medeiros
Elenco: Marieta Severo, José de Abreu, Laura Castro
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