Muitos elementos estão construídos em Anatomia de Uma Queda, desde os seus primeiros segundos de exibição. São nos detalhes e no que está posto pelo discurso não verbal, que o espectador pode criar a sua própria versão de quem é a protagonista e o que esta queda é, foi e representa.
Sandra Voyter (Sandra Hüller) é impressa com diversas características que podem causar suspeita dentro de uma sociedade conservadora e preconceituosa. Ela é mulher, estrangeira, bissexual e intelectual. Somente por esta listagem, ela se torna uma ofensa imediata, principalmente em termos de homem branco europeu.
Uma mulher forte e confiante de si, com pitadas de mistério. Esta é Sandra e ela é acusada de um homicídio, o homicídio de seu próprio marido, justamente por ela ser quem ela é, mas também por quem o marido dela foi. Um homem branco, teoricamente bonito e inteligente. Por que ele terminaria com sua vida?
Ainda que causas e consequências sejam apresentadas a todo momento, a sua palavra é sempre anulada, a partir de argumentos de quem ela é e como isso aparentemente ofende a honra de seu marido, que foi, ainda por cima, o responsável pelo acidente que deixou o filho dos dois cego (Daniel, interpretado por Milo Machado Graner).
Neste contexto sufocante, a suspensão é ampliada pela direção e roteiro de Justine Triet — que escreve ao lado de Arthur Harari. Durante a sessão o público não sabe se de fato Sandra é inocente ou não. As incertezas e incongruências da acusada são colocadas e até justificadas pelo comportamento tóxico e dramático de seu marido.
A queda foi intencional? Ele era suicida mesmo? Ela viu ou não ele cair? Ela é uma mulher reservada, culturalmente mais fechada e, por isso, tem outra perspectiva da vida ou os argumentos machistas atrapalham quem assiste de entender que, na verdade, Sandra estava cheia do seu esposo e deu fim a vida dele?
A atuação de Hüller vem para preencher ainda mais a tela deste oceano de perguntas. As suas expressões faciais dúbias elevam a potencialidade do mistério. Seu corpo diz uma coisa e seus olhos outra. A composição da intérprete é rica de signos plurais, que contradizem a todo instante.
Ela se utiliza, por exemplo, de expressão de ódio para falar de paixão, medo para descrever ternura e frieza para tratar de amor. Em cena, Hüller demonstra não apenas a consciência sobre a construção de um papel, mas também da subversão do óbvio dentro deste processo criativo.
Nada é o que parece? Ou o é? Para fomentar esta atmosfera, as personagens Vincent — advogado de defesa — (Swann Arlaud) e Daniel — seu filho — chegam como seus aliados, mas que também não confiam em Sandra completamente. Aí que está uma das genialidades da narrativa de Anatomia de Uma Queda e da atuação dos principais coadjuvantes deste longa-metragem. Se eles não confiam nela, como a plateia poderia confiar?
É nesta lógica que Triet e Harari elaboram uma progressão destas duas figuras masculinas, na qual eles vão gradualmente deixando que Sandra seja creditada. São eles que fazem com que ela ganhe voz e seja vista de uma maneira menos vilanesca. Se os rapazes a defendem, é mais fácil de defendê-la? Talvez.
A trama vai tornando menos relevante a resposta para “a queda” e vai deixando que o mergulho nas consequências deste acidente (?) sejam maiores do que todo o resto. Assim, a técnica faz os sentidos crescerem e a atenção para cada fato também.
Há a casa fria, cercada de neve, de angústia, de passado, de briga e morte. Há o júri de temperaturas mais quentes, que traz pavor, revolta, reviravolta, segredos, justiças e injustiças. Azul, vermelho e branco, como a cor da bandeira da França, do idioma que é tão complicado para Sandra se expressar.
Porque ainda existe este ponto em Anatomia de Uma Queda, essa cereja do bolo por assim dizer. De certo, esta interpretação da obra pode ser um tanto exagerada. Todavia, durante a projeção uma pergunta pode rondar a cabeça do público: por que ela fala em inglês se ela é alemã?
Bom, Sandra diz que este é o meio do caminho. Se ele fala francês e ela alemão e os dois falam em inglês, o terceiro idioma seria o meio termo. Mas, indo um pouco na lógica linguística — que não é uma especialidade dessa que vos escreve, mas tão somente uma interessada em estudo de línguas — a forma de se expressar no inglês é bem mais parecida com o alemão.
Desta forma, as nuances e uma impressão de subjetividade intensa que as línguas latinas têm são uma espécie de barreira expressiva para Sandra. O alemão e o inglês são um tanto mais objetivos, diretos, mais como a sua personalidade que foca na praticidade.
Se o marido Sandra tem uma parte de um livro dele bem escrita, porém ele não quer usar, qual seria o problema dela adaptar e utilizar em sua própria publicação? Esta é Sandra, sua maneira de sentir e vivenciar o mundo. A sua profunda e multifacetada personalidade está toda ali, em cada milímetro da história.
O lugar no qual ela estava vivendo, sua família nuclear e a sociedade que a cerca também estão ali. É por isso que pouco importa se Sandra matou o seu marido. O que é relevante é observar as dinâmicas sociais, as forças e rupturas do patriarcado e quais são as chaves da libertação de uma mulher.
Através de uma decupagem cuidadosa de Triet, que foca em dar a dimensão dos espaços, das emoções das personagens e das dúvidas da trama, Anatomia de Uma Queda junta qualidade de tecnicidade e de discurso.
Além de uma cineasta competente, de um roteiro meticuloso e um elenco talentoso, o filme ainda tem a criação de sentimentos vindos da trilha sonora. Entre músicas, ruídos e silêncios, o universo ficcional do longa é estabelecido e vai crescendo a cada minuto de exibição. Esta é uma produção sem falhas, sem equívocos, é cinema de primeira, é obra-prima.
Resta a este texto, assim, ser finalizado com uma agradecimento à Justine Triet, que faz um trabalho enxuto, de boas decisões. Por esta razão, seu projeto irretocável em o melhor filme das estreias mundiais de 2023. Que ele seja visto, revisto, analisado e reanalisado, até que não restem mais perguntas e todas as perguntas sejam inesgotáveis…
Direção: Justine Triet
Elenco: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado Graner
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