Rapto

52º Festival du Nouveau Cinéma de Montréal: Rapto

5

Existiriam várias maneiras de começar esta crítica. Talvez, esta que vos escreve – e acaba relatando tantas experiências pessoais não solicitadas por vós – pudesse iniciar a escrita contando como Marco Bellocchio dirigiu um dos filmes mais marcantes da sua adolescência cinéfila: Bom dia, Noite. Um outro sequestro era abordado, em uma outra época, mas Bellocchio é preciso (e até genial), ao criar imagens impactantes e que conseguem entregar uma visão profunda e completa de um enredo.

Aqui não é diferente. Em Rapto, o ano é 1858 e a Igreja Católica domina o mundo, com seus dogmas, regras e impunidades. Neste período, o famoso Papa Pio IX roubava crianças de suas casas, para convertê-las ao cristianismo. O garotinho Edgardo Mortara (Enea Sala), de seis anos, é uma das vítimas do Papa. Judeu, ele é retirado de sua família e nunca mais retorna para morar com eles. 

Baseado em um caso verídico, existem diversos pontos positivos, que tornam este longa-metragem uma obra prima. A começar pelo tom equilibrado. Ainda que existam extensas camadas de melodrama, o uso do gênero dramático se dá de maneira consciente e com a convocação de respiros, que deixam com que esta escolha narrativa eleve a potencialidade dos sentimentos expostos no ecrã. 

As emoções afloradas, os gritos, as lágrimas são todas justificáveis dentro da dor de uma família estilhaçada pela vontade arbitrária e cruel do catolicismo ferrenho, do uso desmedido do poder do clero. Assim, o peso colocado em cena é proporcional ao conteúdo da trama. Além disso, a mise-en-scène traduz posições sociais, políticas e as próprias sensações das personagens em Rapto.

Rapto

As movimentações estão mais presentes nos corpos do elenco do que na própria câmera. Em planos mais estáticos, Bellocchio insere as figuras do clero, por exemplo, centralizadas, com gestuais ligeiros, porém um tanto reduzidos, revelando toda a frieza, cálculo das ações e manipulações de uma casta da sociedade. Já a família de Edgardo, está em desespero e sofreguidão. Assim, eles se deslocam recorrentemente, mas com pesar e gestuais grandes. 

Os seus rostos entram mais em close-up, dando oportunidade do público de investigar e observar lentamente os seus semblantes. Já na direção de arte e fotografia, tem-se um jogo curioso de temperaturas em Rapto. O ciano vem dos Mortara, que vão da serenidade do início da projeção, para a melancolia e o medo. O vermelho, laranja e amarelo estão com os católicos, pois estão encharcados de poder e considerados aqueles que são abençoados.

É uma dicotomia bem relevante, pois revela a hipocrisia da aparência e do discurso cristão, que vem há séculos destruindo a mente e a vida das pessoas (na contemporaneidade, os crentes cumprem esse papel, por exemplo). Assim, as sombras se alastram nos quadros dos Mortara, ao passo que, enquanto Pio IX está vivo, a luz irradia sobre a tela, confirmando esta sensação de que nem sempre o que está no lado claro é o melhor. 

Esta informação também imprime na história o grau do poder do Papa e do clero, que podem fazer o que bem entendem, à luz do dia, ainda que parte do povo se revolte. Estas tensões vão se elevando durante a exibição, na qual a obviedade da impunidade da igreja, juntamente com a ausência de poder da população criam uma atmosfera angustiante e sufocante.

Porque ainda existe o fato de que os Mortara tinham alguma condição de brigar, por isso o caso ficou conhecido e disseminado. E a produção deixa isso nítido em seu discurso, contando como Edgardo não foi o único e como diversas crianças foram arrancadas de seus lares.

Rapto

Por fim, vale destacar a unicidade do elenco do filme, principalmente no trio central: Edgardo, Marianna (a mãe, interpretada por Barbara Ronchi) e Salomone Mortara (o pai, interpretado por Fausto Russo Alesi). Os três possuem carisma, troca de olhares e intenções de texto, que criam uma empatia maior com as personagens. 

Através da construção de papel destes atores, é visível que eles possuem sensibilidade e compreensão do que aconteceu com os Mortara. As pausas, as respirações, os momentos de lágrimas são orgânicos, porque a contracena tem um jogo cênico, que carrega cumplicidade. Eles se olham, se tocam e se aproximam um dos outros com precisão e tônus corporal. 

Desta maneira, Rapto é conciso em seu roteiro, no que diz respeito à elencar cada fato importante para o conteúdo geral, porém é permeado de impressões sensoriais, que grudam o espectador na sua cadeira. A torcida pelo menino e seus familiares vai até o desfecho da obra, mostrando a força do novo trabalho de Bellocchio e sua equipe. 

Rapto é brilhante, porém deixa um gosto amargo de saber que nada aconteceu com Pio IX, que além de tantas coisas positivas que ele recebeu em vida, este senhor ainda carrega consigo nome de bolo, de estação de metrô em Montreal, é o segundo pontificado mais longo da história depois de São Pedro e foi beatificado em 2000. 

Direção: Marco Bellocchio

Elenco: Enea Sala, Barbara Ronchi, Paolo Pierobon

Assista ao trailer!