É curioso observar como Jérémie Périn, em sua primeira direção de longa-metragem, cria planos inteligentes ao ponto de enganchar o público velozmente. Em um mundo distópico, no qual humanos, robôs e humanos-robôs coexistem, o espectador consegue se sentir inserido no universo tão rico de informação presente nesta animação, porque, juntamente com a fotografia e a arte, existe na concepção técnica da direção de Mars Express um cuidado em compor quadros que revelam diversas informações sobre aquele universo.
Isto porque não existe aqui uma necessidade de se valer de diálogos para explicar o que é existe dentro desta realidade ficcional e o que a compõe. Assim, é observável a existência de diversos tipos de máquinas e figuras robóticas, e que algumas parecem humanas, outras animalescas, outras são exatamente o que se conhece sobre robôs. Talvez, o mais interessante neste contexto seja que quando as pessoas morrem, elas podem continuar existindo, através de um corpo cyborg, com consciência humanística, uma espécie de duplicata.
Esta última parte é um tanto mais complicada, porém é gradativamente explicada dentro do enredo e este é um dos maiores ganhos do longa. Apesar de sua rede complexa de criações, com uma quantidade extensa de personagens, conflitos, subplots, sequências de ação e tensão, o roteiro se mantém coeso na maior parte da sessão, sem que a estrutura central se perca para dar explicações ou para dar conta do desenlace da trama e das subtramas.
Esta é uma característica relevante de ser ressaltada porque, muitas vezes, quando uma produção é tão ambiciosa, ela tende a se perder em si mesma. Aqui não existem lacunas para o que é importante para a narrativa. Existe uma abertura de espaço, porém, para rumos interpretativos múltiplos em sua plateia.
Neste sentido, Périn, que escreve ao lado de Laurent Sarfati, entrega um bom resultado geral. De todo modo, é preciso apontar que a riqueza presente em Mars Express faz com que um lamento possa surgir depois de assisti-lo. Com tantas personagens fortes e um ambiente criativo criado, a obra merecia uma duração maior, sendo que seu formato funcionaria mais apropriadamente caso a mesma fosse uma série.
É bem comum que, atualmente, exista a todo momento uma ausência de compreensão de qual é o melhor formato para cada história (longas que poderiam ser curtas, seriados que poderiam ser curtas, longas que deveriam ser minisseries etc). Este fator não compromete o resultado final, porém há aqui uma sensação de desperdício.
A trajetória de Carlos Rivera (Daniel Njo Lobé), por exemplo, renderia um outro filme – suas camadas deveriam, inclusive, ter sido mais exploradas. A parceria dele com a protagonista Aline Ruby (Léa Drucker) geraria bons casos serializados, com investigações de “Monster of the week”.
A dinâmica entre os dois é rica, por contar com subtextos, que imprimem marcas do passado de ambos, como o alcoolismo de Aline ou a agressividade de Carlos. O tom dado ao texto por Léa e Daniel fomentam esta ligação entre estes colegas de trabalho, que deixam a impressão de que já resolveram muitos crimes juntos, de forma não tão convencional e que não são fãs de regras.
Neste sentido, há o ponto mais relevante para a execução da animação ser quase completamente satisfatória. Há muita coragem por aqui! Apesar de toda a riqueza da construção de atmosfera e de trazer personagens carismáticos, com profundidade, esta ficção científica não tem medo de se desfazer de tudo que ela mesma fez com que seu público se apagasse.
Não há, como em tantas produção, receio em dispensar personagens, espaços, instituições, certezas. Ninguém está seguro e, além da dosagem de velocidade inteligente, que confere um ritmo equilibrado para o longa, a suspensão mora na dúvida da sobrevivência do status colocado no início da projeção e de todos que fazem parte dele.
Se não fosse a queda qualitativa, no início do terceiro ato, quando algumas situações se tornam repetitivas, postergando desnecessariamente o final do filme, que há pouco tempo para convocar o seu desfecho e que toda uma riqueza de trabalho para criar aquele universo é deixado de lado pelas próprias limitações de um longa-metragem, Mars Express seria perfeito.
Seja por seu trabalho de iluminação, que aumenta o sentido das ações e eleva o que se sabe sobre as personagens, pela mise-en-scène, que prioriza ambientar o espectador e um roteiro que quase nunca deixa a tensão se esvair, este projeto revela um futuro promissor para Périn e sua equipe.
Direção: Jérémie Périn
Elenco: Léa Drucker, Daniel Njo Lobé, Marie Bouvet
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