Existem muitas camadas inseridas em Tratado de Invisibilidad, documentário de Luciana Kaplan. Neste longa-metragem é possível encontrar algo raro no cinema, que é o equilíbrio perfeito entre qualidade discursiva e técnica. É comum que documentaristas foquem demasiadamente em seus temas e se valham, unicamente, de boas personagens e histórias. Todavia, a criatividade e as ferramentas cinematográficas são deixadas de lado. Algumas vezes, cineastas se inspiram e convocam recursos plurais do audiovisual, mas não elaboram a investigação de uma trama e do que está sendo contado em sua obra.
Neste sentido, Kaplan revela a força de seu trabalho, emprestando um olhar poético para uma realidade dura das profissionais de limpeza no México. A humanidade é posta em cena e o público se depara com a possibilidade de proporcionar uma escuta atenta para aquelas que são constantemente invisibilizadas. Visualmente, há a criação de um paralelo imagético, que põe estas mulheres centralizadas, em planos mais fechados, nos momentos de entrevistas. Já quando o espectador acompanha as suas rotinas de labor, elas são vistas no canto da tela, em quadros mais abertos.
Ao mesmo tempo, o desenho e a mixagem de som – feitas por Lena Esquenazi e Antonio Porem Pires, respectivamente – fomentam a instalação da atmosfera do filme, através de um jogo sonoro diegético e extradiegético. Os ruídos da cidade, do serviço de limpeza, da ventania que carrega o lixo, junta-se à música original de Alejandro Castaños e às sonoridades suaves, que combinam com esta argumentação do doc de que, de um lado, há a sociedade, que exclui estas profissionais, negando-lhes direitos básicos de trabalho, que não as olha no olho, não as agradecem, sequer lhes cumprimentam, por algo tão necessário, árduo e fundamental para todos, que é a limpeza – dos metrôs, aeroportos, cinemas, da rua, de todo e qualquer lugar público.
É assim que a equipe do longa imprime esse cuidado com suas personagens, progressivamente. Quanto mais a trama avança, mais estas mulheres são protegidas pelo discurso da obra. Discurso esse que deflagra o descaso do governo do México para com estas funcionárias e de todo um sistema corrupto, pérfido e irresponsável de empresas terceirizadas. É neste local de poder que reside a verdadeira sujeira do país. Quanto mais o público as acompanha limpando, mais pensamentos como esse são formados. As mulheres limpam e organizam sem parar, enquanto aqueles que as ferem e agem de forma dolosa, sujam.
E é na junção de elementos visuais com sonoros, que as reflexões e impactos são trazidos em Tratado de Invisibilidad. Contudo, sempre nesta dinâmica de busca por um equilíbrio entre os dois, mesmo que haja força em ambos. Os relatos mais intensos são misturados com instantes de observação destas mulheres e musicalmente são postas melodias lentas, suaves e melancólicas. Um exemplo significativo é quando a plateia escuta a trajetória de Aurora. A senhora conta sobre agressões verbais, enquanto realiza a limpeza da cidade. Paralelo a isso, é possível ver como as pessoas ao seu redor ignoram a sua presença e ela precisa gritar “licença”, para que abram espaço, enquanto Aurora carrega uma sacola de lixo pesada.
Para ampliar a sensação de dor e desespero da situação, a produção investe em utilizar fotografias, com uma granulação alta e alguns borrões. Esta estratégia pode ser traduzida na ideia de uma distorção do real que, muitas vezes, é mais absurda do que a fantasia. Diversas pessoas cercam Aurora, porém ela parece sozinha, desprotegida e desrespeitada, como se fosse intocável, por conta de sua profissão. Estas imagens e as seleções estéticas mostram uma profundidade da compreensão de Kaplan e sua equipe no que estão contando, de fato.
Esse zelo também é colocado quando são escolhidas atrizes para falar o relato de Claudia, funcionária do metrô, que se encontra em estado completo de vulnerabilidade. Com uma rotina de assédios de todos os tipos e um trabalho insalubre, a mesma teme ser punida pela empresa terceirizada, contratada pelo governo para atuar no serviço de limpeza dos metrôs. Ainda que sejam intérpretes, as suas vozes permanecem no tom de todas as outras entrevistadas, bem como a decupagem é semelhante. Este também é um ponto alto dentro das escolhas do documentário, porque reafirma o estado de consciência do processo criativo da direção e do roteiro do filme.
Esse olhar apurado para o humano, para os contextos sociais e políticos do mundo e para o cinema é profundo em Tratado de Invisibilidad esta perspectiva complexa de estruturas – sejam elas da sociedade ou do audiovisual – também se apresentam na trama, que vai enredando em que assiste nas vidas destas mulheres e nos dramas que elas vivem diariamente. No início da projeção, por exemplo, observa-se uma sala de cinema sendo limpa. Há ali uma dose de ironia, porque, provavelmente, o espaço que está exibindo o doc passou por esse processo, antes da sessão começar.
Ao mesmo tempo, é como se aquela ação fosse ritualística, uma higienização material sendo posta em prática, para que o mental do público acompanhe aquele ato. A leveza ainda está presente nas primeiras sequências. No entanto, a cada conversa com uma entrevistada, e em seus retornos para o centro do enredo, o peso cresce e a argumentação central fica cada vez mais intensa. Há um clímax exposto, que é o momento no qual as manifestações contra a opressão e falta cumprimento das leis da empresa terceirizada de limpeza do metrô é vista. Em seguida, uma finalização da lógica discursiva inserida no filme conecta todas as histórias colocadas em cena. Assim, é perceptível a noção de roteiro de cinema que Luciana Kaplan possui.
Não é fácil encontrar documentários com esta compreensão de escrita cinematográfica documental, mas aqui, nesta produção, este é um dos pontos qualitativos mais altos. São por estes motivos que o longa-metragem é uma grande realização para o cinema mexicano – quiçá mundial. Além de toda a sua técnica apurada, o seu tema é urgente e necessário. Amarrando a lógica de que arte pode (e deve) denunciar, porém não esquecendo que é um produto artístico, Luciana Kaplan emociona, impacta e cria um importante documento para se contar a história contemporânea das trabalhadoras de limpeza de seu país.
Mas, Kaplan conta com um riquíssimo time de personagens em Tratado de Invisibilidad, que serão listadas aqui, para tentar, de alguma maneira, encerrar este texto inspirada nas ações do próprio filme analisado, e reduzir um pouco da invisibilidade delas (e dele):
- Teresa Salinas Ortega
- Elena Ordoñez Mendez
- Aurea Salgado
- Gregoria Martínez
- Laura Espinoza
- Rosalba Ramírez
- Martha Aurora Domínguez
- Juan Carlos Díaz Arias
Direção: Luciana Kaplan
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