Praia Formosa não é um filme fácil de escrever sobre. Em suas múltiplas camadas de sentido, o longa-metragem de Juliana de Simone (Rapacity) – que escreve o roteiro ao lado de Aline Portugal e Mariana Luiza -, traz uma camada de satisfação espectatorial, devido ao poder entregue a sua protagonista Muanza (Lucília Raimundo). Ela é colocada como realmente é: uma guerreira, que luta contra seus algozes, atravessando os séculos, em uma metáfora que aponta, sem medo, para um Brasil que permanece escravocrata.
O jogo de imagens, que sobrepõe figurinos e objetos cênicos do passado, no qual Muanza e sua amada Kieza foram escravizadas, com o presente, no qual símbolos das ações da branquitude são expostos, elevam a força do discurso do longa. Ao mesmo tempo, os diálogos reforçam, sem subestimar o espectador, sobre os atos crimonosos de (nós) brancos para com os negros. Ainda, existem as contextualizações das culturas dos países africanos, que continuaram existindo em solos braisleiros e foram passados de geração em geração, pondo em voga no argumento da produção este fator de resistência, diante de uma opressão violenta.
Mas, a idea de inserir a maior parte da narrativa em uma casa em ruínas, com uma escravocrata poruguesta doente – em todos os sentidos que isto pode ter -, é o ponto alto da qualidade da obra. De um lado, Muanza precisa encontrar seu amor, fugir da prisão que a arrebatou e a tirou de suas terras. Do outro, há uma parasita, que permanece presa, mas em seu próprio cárcere mental, de uma soberania inventada e vazia. Todavia, essa dinâmica entre as duas não é preenchida de maniqueísmos. Ambas possuem suas complexidades, que são alimentadas e mostradas para o público em seus textos ditos e não ditos, mas, também, através da decupagem, do jogo de sombras e temperaturas.
A arte, a fotografia e a direção geral se unem para transcrever e passar sentimentos palpáveis de suas personagens. As frivolidades de quem espera sentado para ser servido, a iminência da perda e as criações de estratégias, de quem necessita viver em liberdade e os recursos diversos, frutos de tantas batalhas diárias são evocados por um jogo de luzes e mise-en-scène, como no uso da entrada do colchão, no fundo do ecrã. Neste sentido, o tempo aqui é, assim como na vida “real”, uma ilusão, o devir que é par direto do que já foi. Praia Formosa é o encontro do dramático, com pitadas de lírico e épico.
Há nessa trama um emaranhado de linhas cronológicas, de vivências e experiências que fogem do espaço do passado, presente e futuro. Todas as histórias da humanidade parecem ocorrer simultâneas. Muanza trafega sob todas elas e, mesmo assim, a coesão do enredo quase que não se perde em nenhum momento. O que escapa das mãos das roteiristas é o desfecho. No terceiro ato, o tom didático é evocado. Ele em si, o tom didático, não é um problema. Todavia, este caminho enfraquece o filme que foi construído até então. As metáforas, os silêncio verbais, as imagens que gritam…
Todo esse percurso fica um tanto esmaecido, quando o trecho de encerramento de Praia Formosa é utilizado para explicar e reafirmar o que já vinha sendo discutido anteriormente. A produção continua sendo bem realizada e ecoa na mente por muito tempo, com seus desenhos de sons de água, pés, natureza e aprisionamento ou com seus frames de planos fechados dos rostos de Muaza e Kieza, das danças, dos toques que foram entre personagens ficcionais, porém que parecem que foram feitos na plateia. Essa qualidade de poder sensorial é para poucas histórias cinematográficas.
Esse feito é irretirável e inesquecível. Esse cinema de Julianas, Alines e Marianas é o cinema que se deseja ver florescer cada vez mais.
Direção: Juliana De Simone
Elenco: Lucília Raimundo, Samira Carvalho, Mãe Celina de Xangô
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