Photographer: Massimiliano Rocchi
Photographer: Massimiliano Rocchi

Melancolia, distopia e traições são temas de Tria, curta-metragem exibido em festival na Bulgária

Itália, Inglaterra, Brasil e Canadá são alguns dos países pelos quais o curta-metragem Tria – del sentimento del tradire já passou, em sua jornada por festivais de cinema. Dentro da sua circulação mundial, a próxima exibição do filme será no In the Palace Short Film Festival, na Bulgária, em junho deste ano. Para os espectadores brasileiros, por enquanto, existe a possibilidade de ver a produção pelo streaming Canal+, através deste link. Dirigido por Giulia Grandinetti, Tria explora os limites entre o realismo e o fantasioso, em uma distopia, que convoca um olhar sobre o estrangeiro – aqui, de gregos que migram para a Espanha – e sobre a dicotomia confiança versus traição.

Esta relação dual presente no convívio humano é uma das chaves da narrativa, de acordo com Giulia, que conta como a principal inspiração para o início da a escrita do seu roteiro foi uma experiência pessoal, muito íntima. “Eu estava investigando o tema da traição e me sentindo traída. Para curar minha ferida e entender o que eu estava sentindo, resolvi traduzir esse sentimento para o contexto familiar, aquele em que cada um de nós forma seus próprios padrões relacionais ao longo de toda a nossa existência”. Todavia, para colocar esta temática em pauta, a artista e a sua equipe focaram em deixar nítida uma estética que fomentasse uma atmosfera de fábula, de juventude e um tanto de mistério.

Giulia comenta que, ao lado da sua diretora de fotografia (Eleonora Contessi), a aura que ela intuiu que o curta teria, permeado de tonalidade amarela, foi ganhando forma e sendo construída progressivamente. A realizadora acredita que Tria foi um trabalho intenso, mas também bastante fluido, ao ponto de todas as suas ideias parecerem simultâneas às gravações, ainda que tenham sido planejadas meses antes.  Para elaborar este mundo de Tria – del sentimento del tradire, desde o momento de pré-produção até a sua trajetória em festivais, Giulia explica que mergulhou completamente em todos os seus sentimentos, ressignificados pela arte, e em todo seu conhecimento sobre cinema. 

E é dentro de uma rotina agitada , com bastante trabalhos e processos criativos, que a diretora e roteirista entregou um pouco do seu tempo para ceder entrevista para o Coisa de Cinéfilo. No bate-papo, ela revela um pouco sobre esta caminhada intensa do curta, desde seu processo de produção até sua trajetória em festivais. Confira!

Photographer: Eleonora Contessi
Photographer: Eleonora Contessi

ENTREVISTA

ENOE LOPES PONTES – Como e quando surgiu a ideia do curta-metragem Tria?

GIULIA GRANDINETTI – A ideia deste curta-metragem nasceu no verão de 2020. Naquela época, eu estava passando por uma decepção pessoal muito ruim após um caso de amor que acabou mal Tenho a sensação de que hoje se fala muito sobre o conceito de confiança. Somos constantemente solicitados a confiar, mas acredito que o sentimento de traição também seja muito frequente. E a partir daí comecei a escrever uma história que me ajudasse a expressar o que estava sentindo, descobrindo que minha decepção trazia muitos elementos em jogo, como o da sociedade e até a relação que tinha comigo mesmo.

ELP – O filme é permeado de metáforas e símbolos, como foi seu processo criativo dentro dessa construção imagética e discursiva tão forte?

GG – A minha abordagem ao cinema sempre foi cheia de ligações a símbolos e metáforas, não é algo que alcanço com esforço, mas acho que faz parte propriamente da minha linguagem expressiva. Como disse o filósofo Merleau-Ponty, como ser humano estamos condenados a sentir. Escrevo e faço meus filmes por necessidade e o maior desejo que eu tenho é que minhas histórias possam servir a alguém que simpatize com minhas feridas.

ELP – Eu sei que você tem um relacionamento com a Grécia, mas eu queria saber como essa ideia veio até você, deste mundo distópico para falar, em algum nível, para e sobre os imigrantes.

GG – Dizem que todo diretor faz muitos filmes, mas no final falam sempre da mesma coisa. Se eu tivesse que identificar meu fio condutor dentro do meu cinema, diria que seria o tema da diversidade. Todos os meus protagonistas vivem em um estado de desajuste e profunda diversidade em relação ao contexto em que vivem. Em Tria, o peso dessa lei inventada pressiona uma família que concorda em sacrificar uma criança para ter um lugar no mundo. A ligação com a Grécia realmente existe: na verdade, desde criança, vivi todos os meus verões em Kefalonia, em uma casa onde moro com minha grande família de 14 pessoas. A distopia é um gênero que me fascina porque nos permite criar reflexões muito poderosas sobre as alternativas do nosso mundo e para ser uma distopia ela precisa estar próxima do mundo real. Na cidade de Roma, onde moro há muitos anos, a questão da imigração é muito sentida. Existem muitas comunidades ciganas e o processo de integração é muito complexo. Querendo criar uma ponte entre a imaginação e a realidade, pensei em criar esta história: na qual, para acolher a integração, se propõe uma lei aterradora. 

ELP – O elenco é bastante coeso, como foi o trabalho com os atores, principalmente com as atrizes que compõem o trio?

GG – Trabalhar com atores é o coração do trabalho de um diretor para mim. Pessoalmente acho que 50% do trabalho foi escolher pessoas que tivessem boas e sólidas razões para fazer parte do filme. E depois o trabalho de pesquisa realizado em conjunto. Ao longo dos anos desenvolvi o meu método de trabalho particular que proponho sempre e que me deixa sempre muito surpresa pela forma como os atores conseguem satisfazer os meus pedidos mantendo-se fiéis à sua forma de se movimentar no espaço e de se expressar. Nesse caso, o desafio foi ainda mais difícil porque o elenco tinha que atuar em uma língua desconhecida, mas com certeza demos mais espaço para trabalhar o corpo e a voz, e por fim o código linguístico. Posso ainda acrescentar que se a interpretação do elenco é crível, é também graças ao magnífico trabalho realizado com o look e os figurinos, feitos ad hoc nos seus rostos e corpos, pela figurinista Martina Latorre e pelos maquilhadores Irene Del Brocco e Stella Bignoli.

ELP – Dentro do filme, há muitas relações internas e como elas são exteriorizadas. Os diálogos são bem enxutos, por exemplo, mas há muito dito no silêncio, com emoções fortes e pulsantes. Como esse elemento funcionou na construção da escrita do seu roteiro?

GG – Quando a tragédia está no ar, as palavras se tornam supérfluas. O mundo vivenciado por esses personagens já me parecia tão poderoso e essencial que percebi que poucas palavras eram necessárias. Acho que não precisamos acrescentar muito mais às intenções, corpos, olhos e mãos dos personagens que vivenciam a tragédia. Acredito que a sugestão mais importante para seguir nessa direção ao escrever o roteiro veio do estudo da cultura grega antiga: uma cultura em escala humana, respeitosa das leis e pronta para seu próprio destino de morte. Diante disso, entendi o quanto silêncios e olhares poderiam ser mais poderosos nessas personagens do que palavras vãs e fracas.

ELP – Gostaria de saber um pouco sobre como funcionou o seu processo de direção e roteiro. Você já pensou na decupagem enquanto escrevia ou costuma separar as duas funções. Como foi toda essa criação?

GG – Quando escrevo, sinto que tenho um diálogo forte e equilibrado entre minhas partes instintivas e racionais. Normalmente a faísca ocorre quando as duas partes se tocam. E então vomito – mesmo em pouco tempo – o que está flutuando dentro de mim há muitos meses. Posso dizer com certeza que, porém, já na escrita sempre sinto um vínculo muito forte com a montagem. Quando chego ao set, tenho ideias muito claras sobre o ritmo das cenas, sobre o timing, sobre como alguns planos servem para dialogar com outros. Costumo raciocinar em sequências de imagens, seguindo uma espécie de diagrama de emoção, que parece ser feito de forma espontânea, mas na verdade acho que tem muita ciência e muita matemática dentro disso. 

ELP – O filme tem um paralelo, um jogo de temperaturas bem opostas, mas, ao mesmo tempo, eles conversam. Conte-me um pouco sobre como funcionou seu trabalho criativo junto com Eleonora Contessi.

GG – Trabalhar com Eleonora foi maravilhoso. Ela é uma pessoa extremamente sensível e entendeu imediatamente qual direção eu queria tomar. Foi ela a primeira pessoa a quem propus este projeto e a primeira informação que lhe dei foi: “Este filme tem a alma de uma cor: o amarelo.” Ela aceitou o desafio e durante meses criamos juntos o mundo de Tria, inspiradas por sugestões pessoais, buscas por ambientes cinematográficos, estudando pinturas e falando sobre sonhos. Até que ela entendeu o que era o amarelo de que eu falava e que foi identificado pelo talento de Eleonora sendo este amarelo a luz de sódio. O curta também é rodado em filme 35mm, e isso exigiu um estúdio enorme para a preparação da luz para recriar a atmosfera que queríamos. O contraste que se encontra a nível cromático é aquele entre o amarelo do mundo real e os tons frios e azuis do mundo onírico/inconsciente. 

ELP – As canções têm uma força dentro da narrativa, como se também fizessem um paralelo com os sentimentos dos personagens. Fale-me um pouco sobre as músicas do curta-metragem. São composições originais, como foram pensadas para as cenas?

GG – A música é sempre um personagem onipresente para mim. Neste caso, eu queria que a música testemunhasse um mundo com raízes antigas, mas ao mesmo tempo entretivesse graças àquelas batidas primordiais que a música tradicional dos Balcãs carrega na alma. Por exemplo, a cena da dança em que as irmãs vão cumprimentar o grupo de amigos é um momento de entretenimento com conotações eróticas (até dionisíacas se a lermos em tom grego), mas ao mesmo tempo quis que também recordasse a ritual fúnebre de uma morte que está a caminho. A música sempre esteve ligada a festas e rituais; é o personagem que detém as chaves para nos levar a mundos além da vida. E num curta-metragem em que está em jogo a vida, a música só poderia ser protagonista e testemunha. Para realizar esta façanha, tive a grande honra de colaborar com a Balkan Lab Orchestra, que inclui Lucia Alessi e Piersante Falconi, compositores da música Tria

ELP – Falando de uma perspectiva mais ampla, até onde vi seu trabalho, há algo de fábula e de juventude que permeia sua arte. Você vê essa característica em seus filmes? Quais são os caminhos que permeiam seus processos criativos e inspirações artísticas?

GG – Fábula e juventude: são certamente duas palavras que sinto próximas da minha história. Por mais complexos que meus filmes possam parecer, na verdade sinto que meu processo criativo é extremamente simples por natureza: eu me entrego a uma necessidade. Acredito que a infância e a adolescência são para todos duas fases da vida em que muitos conflitos e embates se encontram. Muitas vezes tenho a sensação de que tudo que vivi de complexo e às vezes inexplicável é puro combustível para minhas necessidades narrativas. O cinema é realmente um meio de dar sentido a muito sofrimento e a muitas cicatrizes. Um caminho de salvação, uma espécie de filosofia, que às vezes chega a assemelhar-se a uma religião totalmente pessoal. Muitas vezes, quando o filme termina, essa ferida para de sangrar. 

ELP – Você gostaria de adicionar algo? Fique à vontade, caso queira.

GG – Por muito tempo me perguntei o que era o oposto de ”trauma”. Eu me fiz essa pergunta por muitos meses e todos que conheci por cerca de um ano. E esse curta me fez perceber que o oposto de trauma é… o conceito de poder. Poder no sentido de poder fazer, de agir. Os traumas nos paralisam, nos enfraquecem. Portanto, é importante aprender a reagir e retomar o poder em nossas mãos. Quero agradecer aos meus filmes porque graças a eles posso me expressar, posso me conhecer, posso perdoar, posso me tornar uma versão melhor de mim mesmo e não me fazer vítima dos traumas que sofri. Agradeço a todos os meus colaboradores, em particular aos meus produtores Riccardo Neri e Vincenzo Filippo (Lupin Film), ao meu distribuidor Flavio Armone (Lights On) e a todas as pessoas que acolheram o meu filme.