A produção original da HBO The Normal Heart tem fortes chances de faturar alguns Emmys no próximo dia 25 de agosto – foram onze indicações ao prêmio, entre elas, as de melhor filme para TV, melhor ator principal e coadjuvantes em filmes neste formato, assim como de direção e roteiro. O filme já foi discutido antes aqui, mas merece destaque nessa coluna.
Dirigido por Ryan Murphy e escrito por Larry Kramer, o filme se baseia na peça teatral de mesmo nome escrita por ele em 1985. Conduzidos pelo protagonista Ned Weeks, interpretado por Mark Ruffalo, acompanhamos o drama vivenciado pelas pessoas LGBT no início daquela década, quando os primeiros casos de AIDS começaram a atingir a população gay. Ao presenciar a morte dos amigos e o descaso do governo com aquela situação, cada vez mais agravante, Weeks, um escritor polêmico e combativo, que, inclusive, não é tão bem recebido pelo público gay por suas críticas aos comportamentos de liberdade sexual por julgá-los moralmente como promíscuos, junta forças com a Dra. Emma Brookner (Julia Roberts) para militar em busca de estudos sobre a doença que acabara de surgir assim como auxiliar e conscientizar a população atingida pela AIDS.
É interessante notar, então, as estratégias que o filme toma ao trazer a tensão constante existente dentro do grupo identitário composto pelos LGBT. Os diálogos monologais, possivelmente advindos da peça original, dão um tom de confissão e desabafo ao filme. Aqui, não é só a AIDS que é discutida, mas a própria condição sexual e a maneira que os indivíduos vivenciam suas realidades através dela.
Quando Weeks e a Dra. Brookner passam a reunir amigos e realizar reuniões para conscientizar os mais próximos da necessidade de controlarem seus impulsos sexuais, já que haviam indicações da transmissão sexual da doença, os gays não aceitam bem a ideia já que vinham, até então, defendendo a sua liberdade de se relacionarem abertamente sem temerem sua sexualidade.
O temperamento explosivo de Weeks e o modo com que milita pelo suporte daqueles gays contaminados pela AIDS, com suas polêmicas atitudes para chamar a atenção das autoridades, seja em público ou na mídia, passa a ser vista por alguns como uma maneira de autopromoção, de modo a questionarem as reais intenções do escritor.
Por isso, os amigos, que no início o ajudam e inclusive, se juntam pra montar uma instituição de apoio, começam a se sentir cada vez mais incomodados com a combatividade de Weeks, gerando um desgaste crescente dentro do grupo. Ora, Weeks já não era tão bem aceito por suas ideias em suas obras, agora, alguns passam a enxergá-lo como uma ameaça às conquistas da comunidade ao defender uma forma de repressão dos desejos sexuais dos gays.
A lógica de alguns personagens pode até parecer rasa e simplista à primeira vista, mas é compreensível graças ao modo com que, talvez por ser derivada de uma peça teatral, o filme traz os diálogos bem dramáticas e, muitas vezes, com um tom monologal como afirmei mais acima – é muito difícil não se emocionar e compreender a dor do personagem Mickey Marcus (Joe Mantello), em um ponto chave e representativo deste conflito entre os personagens, quando realiza um desabafo em que demonstra ao mesmo tempo uma indignação com a realidade de descaso vivida por eles diante da falta de atenção das autoridades, a culpa sentida por ter lutado durante tempos para terem a liberdade de vivenciarem suas sexualidades e agora ter essa liberdade apontada como a causa pela contaminação dentro da comunidade e a discordância com os métodos e as ideias de Weeks.
Tal tensão também é percebida, por exemplo, quando nas reuniões para se eleger o representante da instituição, há claramente uma preferência por Bruce Miles (Taylor Kitsch) – este é justamente o oposto de Weeks; masculino, com um pé dentro do armário e com um discurso de assimilação e integração aos padrões heterossexuais, Miles é enxergado como um caminho mais tranquilo para se dialogar com as autoridades e conseguir o apoio necessário. No entanto, Miles tem justamente em Weeks o melhor amigo, que o escuta em todos os momentos de crise – inclusive quando ele começa a sentir o peso da suspeita de ter sido um dos vetores iniciais da doença, já que perde, sucessivamente, parceiros contaminados pela AIDS ao longo do filme, o que vai gerando uma instabilidade emocional crescente no personagem.
Entender como e o porquê Ned Weeks tem um temperamento explosivo é um processo que se dá a partir de seu relacionamento com o irmão Ben Weeks (Alfred Molina), com o namorado, o jornalista Felix Turner (Matt Bomer) e também, embora em uma quantidade de tempo menor no longa, mas não menos importante, com a Dra. Emma Brooks e Tommy Boatwright (Jim Parsons). É na interação com estes personagens que Ned nos é revelado quanto a sua personalidade e seus posicionamentos, assim como nota-se a força da atuação deste núcleo de personagens – especialmente os dois últimos citados, que marcam pela ausência e sempre roubam a cena quando surgem.
Em um diálogo fortíssimo (palmas para Mark Ruffalo e Alfred Molina), a indignação de Ned transparece numa catarse em que ele dá um ultimato ao irmão de que só irá considera-lo novamente, quando aquele o enxergar como igual. Embora sempre tenha apoiado o irmão, fica claro que Ben foi cúmplice da maneira com que a família tratou a sexualidade de Ned, levando a vários psicólogos que tentavam curá-lo de sua “doença”; no discurso de Ben, embora revelado em meio a confusão e a dor, fica claro também a sua incompreensão com a luta do irmão e o modo como ele ainda o enxerga como um doente, revelando assim a contradição que muitos familiares têm com seus parentes LGBT ao ficarem dividos entre o sentimento que têm por eles e sua não aceitação da sexualidade do outro.
Assim, surpreendentemente, é Felix Turner, que, ao final, surge como uma possibilidade de retorno ao contato entre os irmãos quando, em outro ponto chave, é responsável por esse restabelecimento. A interpretação reservada de Matt Bomer é um dos pontos fortes do filme – namorado de Ned, o personagem ganha profundidade com o avanço do longa e dá ao telespectador um elo que demonstra os medos e fraquezas do outro personagem, já que ele sempre parece em combate com os outros e, com Turner, tem, naturalmente, um comportamento amoroso e confessional, ao mesmo tempo que, a partir do momento em que se descobre contaminado pelo vírus, nos apresenta a triste realidade vivenciada pelo casal advinda da crescente piora de sua saúde.
Outros dois grandes destaques do filme, embora com pouco espaço na tela, são os personagens interpretados por Julia Roberts e Jim Parsons. A Dra. Emma Brookner é de longe a personagem mais interessante e complexa do filme – muito difícil entender suas motivações (fora aquelas alegadas explicitamente), visto que pouco nos é revelado sobre ela, a não ser o que a levou a paralisia foi a pólio em sua infância. Certo é que sempre rouba cena, seja pela personalidade arredia e ao mesmo tempo protetora, seja pelo esforço e paciência da personagem ao lidar com temperamentos, igualmente, difíceis como o próprio Ned Weeks, demonstrando, assim, um grande esforço de empatia. Destaque para a cena em que ela explode diante de uma comissão de apoio financeiro do Estado, que julga seu projeto para pesquisar a AIDS e nega o suporte.
A maior surpresa do filme, no entanto, fica a cargo de Jim Parsons. O ator, conhecido pelo seu papel na série de comédia The Big Bang Theory, traz um personagem, Tommy Boatwright, econômico e simples, mas que comunica pelo silêncio na mesma proporção que Ned Weeks comunica pelo grito. Solitário e reservado, o personagem apoia Weeks até os limites e surge como símbolo da amizade familiar existente entre os LGBT, já que muitas vezes estes têm de renunciar à vida no seio familiar dos laços de sangue pela discriminação sofrida pelos parentes e encontram nos amigos uma nova família. Vivendo sempre para os outros e para o trabalho, ele é incentivado por Ned ao longo do filme a buscar viver sua própria vida. Seu monólogo durante o enterro de um dos amigos do grupo é sem dúvida a cena mais forte e simbólica da dor e indignação sentida pelos LGBT, seja pela incapacidade de compreender o descaso e a assustadora circunstância em que eles se encontravam (e as outras vivenciadas nos dias atuais), assim como pela dificuldade em entender o porquê dele, seus amigos e aqueles que compartilhavam da mesma orientação sexual serem tão rejeitados, considerados abjetos e desumanizados pela sociedade.