Quando O Irlandês (The Irishman) acabou, sua trama e as três horas e meia — que fluem organicamente — acabaram sendo um mero detalhe. Não que a história tenha sido fraca, pelo contrário, mas a única coisa que eu conseguia assimilar era como este filme é uma grande carta aberta e sentimental de Martin Scorsese. Aos 77 anos, ele reflete sobre a morte, seu legado e o futuro do cinema.
O Irlandês abre com Frank Sheeran (Robert De Niro, Coringa), em um asilo, narrando sua trajetória de vida. Ele volta aos tempos de seu serviço militar na 2ª Guerra Mundial e vai até sua ascensão na Máfia. Sua passagem pela ilegalidade começou quando passou a se envolver em um esquema de desvio de caminhões de carne para gangsters.
Isso fez com que ele conhcesse Russell (Joe Pesci, Os Bons Companheiros), um chefe local, com quem desenvolve uma grande amizade. Realizando bicos como assassino e cobrando dívidas locais, ele também passa a se relacionar com o poderoso Jimmy Hoffa (Al Pacino, Era uma Vez em Hollywood), líder sindical de personalidade forte. Quando Hoffa começa a ter seus problemas com o resto da Máfia, Sheeran precisa escolher sua lealdade.
Retornando ao subgênero do drama de máfia já visto em Os Bons Companheiros e Cassino, Scorsese adota uma abordagem diferente. Não há a brutalidade visceral do passado, mas uma espécie de distanciamento. A violência é seca e fria, não se prolongando demais. Ela interrompe a trama abruptamente — como se não fosse convidada ou nem incentivada — mas rapidamente vai embora.
Assim, é quase como se a câmera afastada estivesse julgando aqueles atos, indicando um amadurecimento no próprio diretor, que olha para seu filme de uma maneira muito mais intimista e familiar, com a máfia sendo só mais um pano de fundo daquele enredo. Quando o personagem de De Niro começa a envelhecer, apesar de suas palavras ecoarem as glórias do passado, vai ficando visível que não sobrou nada. O tempo levou tudo. E de que adiantou aquela jornada de sangue? Não que Scorsese glorificasse os foras-da-lei em suas obras anteriores, mas acaba sendo uma visão muito mais cética e madura daquele submundo.
A complexidade política de O Irlandês — que envolve até o assassinato do presidente Kennedy — e todo aquele jogo de ameaças trocadas por homens de terno acabam sendo um grande desvio para os momentos mais marcantes do longa. Mesmo com pouco tempo de tela, a relação de Sheeran com sua família e, principalmente sua filha, Peggy (Anna Paquin, X-Men), é muito significante. Sem precisar dizer muitas palavras, Peggy faz esse julgamento silencioso do pai e seu estilo de vida, valendo mais do que qualquer diálogo do filme. A personagem é esta espécie de bússola moral para o público, que, à primeira vista, pode glorificar a violência do protagonista em certas situações (até pelo carisma de De Niro), mas rapidamente é lembrado de que os fins não justificam os meios.
Conforme o fim vai se aproximando, fica clara a aproximação de O Irlandês com a espiritualidade e a religiosidade. Logo, é muito difícil não pensar no próprio Scorsese. Como católico, ele sente o peso e o valor da família. Há este sentimento de culpa cristã acumulado por uma vida inteira. Seria possível um homem, que cometeu diversos pecados ao longo da vida, ser perdoado na reta final?
Recentemente envolvido em opiniões controversas sobre o que seria cinema ou não, Scorsese acaba que traz um pouco disso ao seu novo projeto. Amadurecido, ele busca entender o mundo atual e o lugar de sua filmografia dentro dele. Ele sabe que as tradições não são mais respeitadas e estão sendo desafiadas, algo personificado no próprio Tony Pro (Stephen Graham, Hellboy), personagem caricato que está sempre atrasado e com roupas inapropriadas para os encontro da Máfia, algo que tira Jimmy Hoffa do sério.
Justamente aí que entra a função da tecnologia de rejuvenescimento em O Irlandês. Trazendo um estranhamento visual de início, ela rapidamente se torna natural ao olho humano (o que é beneficiado pela longa duração). Ao mesmo tempo que Scorsese assimila as novas tecnologias disponíveis na produção cinematográfica, existe uma próprio sentido em sua existência no filme. Não só Frank Sheeran parece fugir dos pensamentos sobre a proximidade e a inevitabilidade da morte, neste fluxo entre passado e presente, mas é o próprio Scorsese que, com o rejuvenescimento, remete a aparência dos atores em seus tempos de glória. Infelizmente, não dá mais para voltar aos tempos de Os Bons Companheiros.
Para um longa que fala tanto sobre morte, O Irlandês é uma digna resposta para os que dizem que o crescente uso dos efeitos especiais irá matar o cinema. Aqui, o renomado diretor consegue utilizá-la, não só de um ponto de vista impecável tecnicamente, como também para mostrar que ela pode ser uma enorme aliada do enredo, sendo muito mais do que adereço para enfeitar o filme através de um embelezamento artificial.
Portanto, Scorsese está reinventando, ressignificando, experimentando e até quebrando os próprios estigmas de sua filmografia. Por exemplo, quem diria que Joe Pesci, em uma atuação tocante, traria um dos personagens mais sensíveis e delicados de toda a carreira de Scorsese.
Próximo do fim de sua vida, é possível que Martin Scorsese esteja com medo do legado que deixará quanto se for. O que não deixa de ser irônico, pois sua própria modéstia — e até uma visão pessimista e humilde de si mesmo — apenas reforça seu nome como um dos maiores cineastas da história ao trazer mais uma obra de arte.
Direção: Martin Scorsese
Elenco: Al Pacino, Robert De Niro, Joe Pesci, Harvey Keitel, Ray Romano, Jesse Plemons, Anna Paquinn, Boby Cannavale
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