No dia 05 de novembro de 2003, o último exemplar da trilogia Matrix entrou em cartaz. Após as irmãs Wachowski revolucionarem a história do audiovisual com todo um universo transmidiático, rico de sentido estético, filosófico e político, o seu desfecho nos cinemas veio com um gosto amargo. O final da narrativa era um tanto desequilibrado e, talvez, tenha faltado maturidade de Lana e Lilly Wachowski na realização de tal intento. Após quase 20 anos de Revolutions, Lana volta ao comando do roteiro e direção deste mundo complexo, criativo, reflexivo e de emoções tão pungentes.
Antes de começar a falar do filme em si, é preciso explicar que Matrix Resurrections não será nada do que o público espera. O momento contemporâneo é outro, é o de se deslocar do outrora para ver a atualidade com um olhar mais direcionado, misturado com sarcasmo e autocrítica. É por esta que razão que Lana consegue avançar nas discussões presentes na obra primeva, por vislumbrar o que fora feito com respeito, mas de maneira crítica. Contudo, aqui, não são perdidas as características centrais de construção de universo ficcional. Existem as doses de nostalgia, que são a ligação entre os dois momentos de Lana, o que ela fora como cineasta e o que ela é no presente.
É por isso, que dentro deste contexto, há muito o que se apontar de positivo dentro da produção e algumas questões que poderiam ser melhor trabalhadas. Começando pelos elementos que funcionam no longa-metragem, há no enredo uma condução cuidadosa do espectador no que se refere ao que fora entregue no passado com o que há de novo. É nítida a compreensão de Lana sobre o que ela e sua irmã criaram, principalmente ao se falar dos upgrades de programação da Matrix e das atualizações que humanos fizeram de inovação nos últimos tempos.
O zelo com a mitologia já existente e a criação de novas características torna o longa mais rico. Nesta conjunção de fatores, a progressão da tensão, as informações inseridas na trama e o desenvolvimento das personagens também contribuem para a sua qualidade. Wachowski não apenas repete dados basilares dentro de Neo e Trinity, por exemplo, como investiga seus sentimentos e ações de forma mais profunda. Inclusive, a diretora e roteirista consegue complexificar ainda mais a dupla, através dos conflitos e desenlaces dentro do próprio filme.
É o casal que move a história e ainda que muito seja dito em tela, Lana não deixa os diálogos expositivos. O que acontece aqui é um convocar de experiências prévias dos mesmos. Neo e Trinity fazem as suas descobertas junto com o espectador. Este último fator, aproxima ainda mais o público do enredo, gerando empatia e elevando a potência da ação das sequências. Talvez, Wachowski poderia retirar os planos vindos dos Matrix anteriores, pois eles subestimam um pouco a plateia e cortam o fluxo narrativo.
No entanto, à medida que a projeção avança, este recurso vai desaparecendo e Lana passa a criar uma identidade própria para Matrix Resurrections. A sensação é a de que um bastão precisava ser levado de um lado para o outro, como se fosse necessário trazer imagens e situações familiares para que o público seja encaminhado para o novo caminho aqui impresso. Neste sentido, esta uma das grandes sacadas da produção, porque quem assiste e quem está dentro do ecrã compartilha uma experiência semelhante e única: a de transformação.
Juntamente com o olhar para cada personagem individualmente, existe também um foco intenso para as relações que, em sua maioria, são fortes e bem amarradas. As presenças de Morpheus e Merovingian são frágeis, é bem verdade. Elas são quase gratuitas, movem pouco a narrativa e são mais um fan service do que qualquer outra coisa. Todavia, isto não é algo necessariamente ruim, principalmente porque, mesmo não trabalhando tanto a participação dos dois na trama, Lana consegue sanar isto colocando referências de Reloaded e Revolutions, não apenas textualmente, como visualmente, deixando que o espectador monte alguns quebra-cabeças com a sua lembrança.
Ao mesmo tempo, algumas recordações são melhoradas em Matrix Resurrections. Quando as Wachowski saíam do mundo da Matrix e colocavam a cidade de Zion na tela, o ritmo se desencontrava, as atuações eram mais frágeis, bem como os diálogos. Nesta atualização, Lana cria a estratégia inteligente de retirar Zion de cena e colocar um novo espaço: a cidade de Io. Mesclando o que há de melhor nos humanos e nas máquinas, a dinâmica das velocidades, as contracenas e as justificativas ficam mais sólidas.
Isto porque, anteriormente, a entrada no ambiente de Zion era uma quebra brusca demais com a da Matrix. Assim, é possível ter uma paridade mais intensa nesta nova configuração, deixando a narrativa fluida. A interpretação de Jada Pinkett Smith, como Niobe, fomenta este intento em manter o que há de importante vindo de Zion e criar aspectos atuais que fortalecem a ideia do que é Io como um local protegido e de resistência, porém de tecnologia jamais vista antes.
A partir de todas estas propriedades especificadas, existem incômodos um pouco maiores, que reduzem um tanto da qualidade deste Matrix Resurrections. Nas sequências de luta, a decupagem e a mise-en-scène poderiam contribuir melhor para a fruição do público. Em certos momentos, a marcação dos intérpretes ou as movimentações de câmera “sujam” as cenas de ação e até reduzem o impacto do que está sendo mostrado. Nada que comprometa sua totalidade, porém é algo que deveria ser executado mais apropriadamente, como já fora em 1999 e, duplamente, em 2003.
Ainda que com estes defeitos, o resultado geral é de excelência. Inclusive, ainda há a melhor parte de Matrix Resurrections que necessita ser abordada. Esta é o fomento do discurso político e social, visto neste quarto filme de maneira intensa e mais bem organizada do que anteriormente. A representatividade soava relevante para as irmãs Wachowski desde o princípio, porém toda a força e esperança da humanidade estavam nas mãos de um homem branco hétero cis. Agora, há todo um equilíbrio de forças, de comando e de poder. Todes são efetivamente cruciais para o sucesso de cada operação. Neo deixa de ser um santo, um Jesus Cristo idealizado e passa a ser mais humano. Já os que o cercam recebem mais força e eficácia em seus intentos.
Sem spoilers, pode-se dizer que algo esperado por muitas pessoas, durante anos – inclusive por esta que vos escreve –, finalmente ocorre: o empoderamento de Trinity. Com seu destino tão dependente de Neo, ela era uma personagem repleta de fragilidades por sua relação afetiva com o Escolhido. Nesta nova edição, os dois caminham de mãos dadas – literalmente – e com equidade, registrando todo o amadurecimento e compreensão de si própria e do mundo, alcançada por Lana Wachowski.
Com muitos acertos e alguns equívocos, Matrix Resurrections consegue se bastar como um filme unitário, mas também reerguer o valor qualitativo de toda uma franquia. Melhorando aspectos frágeis dos seus títulos anteriores, como queda rítmica em Zion, confusões de premissa ou qualidade de representações, esta é uma obra que merece não apenas ser assistida, como revisitada de quando em quando.
Direção: Lana Wachowski
Elenco: Keanu Reeves, Carrie-Anne Moss, Jada Pinkett Smith
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