Crimes do Futuro

Crítica: Crimes do Futuro

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Com pouca margem de dúvida, Crimes do Futuro é um dos trabalhos mais consistentes de David Cronenberg nas últimas décadas. O filme anuncia o retorno do realizador ao que se denomina como body horror da melhor forma possível. Interseccionando gêneros, o horror, o sci-fi e o noir, Crimes do Futuro é um longa que fala sobre tantas coisas que renderia páginas e mais páginas de análise tamanha a abrangência da obra: dor e sua relação com a criação artística, a atração sexual pela aparência e pela interioridade, a forma como desafiamos os limites da natureza e dos nossos corpos por caprichos ou por assimilações de hábitos capitalistas etc.

O trabalho de fôlego de Cronenberg tem início quando nos apresenta um menino cujo comportamento preocupa a mãe. Instintivamente, ele procura objetos de plástico para se alimentar. Logo em seguida, em um outro espectro dessa mesma narrativa, somos apresentados a Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux). A dupla de artistas performáticos é reconhecida por suas apresentações em mesas cirúrgicas, na qual Caprice narra e conduz em tom dramático a invasão ao corpo debilitado de Saul com objetos perfurantes.

Crimes do Futuro está longe de ser um exercício vazio de gênero. É um longa que não usa expedientes de marcas do body horror ou do noir para o puro deleite dos entendidos cinéfilos. Nada é aleatório ou narcisista na imersão acertada do diretor pelos traços narrativos e estilísticos da tradição desses tipos específicos de história, o que só comprova a extrema habilidade do realizador de manipulá-las a propósitos definidos desde o princípio. Crimes do Futuro não é um exercício de vaidade, mas um projeto cinematográfico definido e defendido com inteligência e repertório por Cronenberg.

Crimes do Futuro

O diretor cria de forma orgânica um universo com regras de conduta e linguagem próprias. Nada em Crimes do Futuro parece lembrar os protocolos da realidade que vivemos. Ao mesmo tempo, o filme aponta de maneira reiterada e crítica seus olhares para o que nós, do lado de cá da tela, estamos fazendo com a nossa experiência na Terra, sobretudo a forma como agredimos e transmutamos nossos corpos ao bel-prazer das necessidades de consumo e dos nossos caprichos, por quaisquer vias (arte, sexo, alimentação). Trata-se de um dos temas mais palpitantes da obra.

Os olhares das personagens de Viggo Mortensen e Léa Seydoux, ao mesmo tempo sensíveis por uma pretensa exterioridade, mas no fundo parte dessa engrenagem maluca exposta pelo diretor, são fundamentais para o desenrolar do discurso do filme sobre seus temas. Mortensen e Seydoux são os protagonistas ideais dessa história. Kristen Stewart também tem seus momentos como a burocrata deslumbrada pelo trabalho da dupla, assim como Scott Speedman que surpreende como um líder revolucionário. No entanto, fica evidente que o protagonismo dessa obra é de Cronenberg e sua capacidade de criar uma realidade tão peculiar e fascinante, distante e bizarramente próxima quanto aquela que é construída pelo filme.

A potência criativa alegórica de David Cronenberg tem uma das suas melhores formas em Crimes do Futuro, um filme que o tempo inteiro aproxima o grotesco e o horror da beleza, o prazer da dor, a destruição da criação. Cronenberg faz uma síntese poderosa da maneira limítrofe com a qual o ser humano conduz sua vida na Terra, a capacidade de se destruir por impulsos fúteis (mercantilistas, de prazer efêmero) e de contornar os problemas criados com isso através da criação artística e científica, se aproximando de um divino, que, por sua vez, também se impõe ao humano. Com o filme, o cineasta destaca como nossa experiência humana tem sido até aqui: destrutiva e caótica, mas, surpreendentemente, bela e dispersa na oferta de prazeres. É de um refinamento criativo intelectual e de uma disposição para a provocação cada vez mais rara de se ver com tamanha criatividade nas telas.

Direção: David Cronenberg

Elenco: Viggo Mortensen, Léa Seydoux, Kristen Stewart, Scott Speedman, Welket Bungué, Don McKellar, Tanaya Beatty, Nadia Litz

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