Através de uma espécie de experimento social, o diretor Marcos Pimentel decide, em Amanhã, filmar a interação entre crianças de diferentes nichos sociais, em 2002, em Belo Horizonte. Na Barragem Santa Lúcia, de um lado, há um conjunto de favelas e, do outro, um bairro de classe média alta. Neste contexto, para ambientar o espectador, o filme gasta um bom tempo da projeção mostrando imagens de 20 anos atrás, de como o trio, mesmo com as divergências sócio-econômicas, relacionam-se, brincam e criam um laço que parece intenso.
Somente depois de algumas sequências é que o público é levado a conhecer o que aconteceu com alguns deles, já com imagens de 2022. O documentário traça paralelos sobre a infância, maturidade, dificuldades e superação dos irmãos Júlia e Cristian, moradores da favela Papagaio. É curioso observar como Pimentel consegue construir aproximações com as experiências da dupla e de suas relações tanto com a mãe deles, como com o mundo como um todo.
Nesta lógica, é possível acompanhar planos longos da família assistindo as filmagens feitas em 2002. Cada reação dessas personagens potencializa o fomento da empatia, que já havia sido posta no início do doc, através das gravações das crianças brincando. Mas, o longa-metragem vai além da simples investigação temporal e comparativa. Pimentel consegue, de forma simples, convocar debates políticos e sociais, utilizando os próprios recursos e situações que surgiram durante seu processo de criação.
Um exemplo é a pauta sobre a ausência de Zé Tomás, um dos meninos filmados em 2002. Agora, um homem, com encaminhamentos políticos duvidosos, ele se recusa a participar de um encontro com Júlia e Cristian. Este acontecimento não apenas abala os irmãos, como também interfere no que Pimentel queria com o documentário. Apesar desta lacuna atrapalhar a obra de forma direta, de maneira indireta, diálogos são criados.
O elitismo, o preconceito, a falta de empatia e o descaso da classe média alta brasileira está estampada ali e não era necessário dizer mais nada, inclusive. O não aparecimento de Zé Tomás já é forte o suficiente. Mesmo assim, a produção insiste em anunciar este fato quase que didaticamente. Esta lógica acaba sendo positiva aqui, justamente porque eleva a tensão e deixa ainda mais explícito este comportamento de um tipo específico de pessoa que existe no país e as consequências que suas ações podem gerar, ainda que numa esfera micro, que é o das relações pessoais.
Todavia, o filme deixa nítido que pessoas como Zé Tomás não são uma novidade dos tempos atuais. Elas sempre estiveram ali. Além disso, todas as dificuldades e tormentos de quem vive do outro lado da barragem são evidenciados. No entanto, Amanhã também convoca momentos felizes de Júlia, Cristian e a mãe deles. Esta estratégia é positiva, porque acaba equilibrando o resultado geral. Existe muito peso na trajetória dos irmãos e vê-los alegres, alivia o contexto trágico presente em suas vidas.
Ainda assim, é incômodo que Pimentel não consiga convocar tantos recursos criativos para a narrativa. Há muita estratégia repetida, que acaba por deixar a sessão cansativa, com quedas rítmicas. Contudo, Marcos Pimentel justifica alguns problemas presentes no longa, sendo eles principalmente referentes aos entraves que ele encontrou neste resgate do encontro entre estas crianças, crescidas no início dos anos 2000.
Enquanto Zé Tomás tem receio de vincular a sua figura com a de pessoas de outra classe social, que moram em uma favela, Júlia e Cristian enfrentam seus próprios monstros internos e externos, com questões psicológicas, financeiras etc, fazendo com que eles não estivessem disponíveis para filmar junto com a equipe do longa em todos os momentos que a equipe precisava. Ainda assim, tanto a pessoa que montou como o diretor poderiam ter evocado outros recursos, que não fossem apenas as gravações de 2002 e 2022.
No geral, Amanhã é provocativo, principalmente nos offs feitos por Pimentel e nos cortes sugestivos, que conectam os paralelos dos últimos 20 anos, na vida dos protagonistas e do Brasil. Com um discurso profundo sobre as questões socioeconômicas e políticas do país, existem muitas camadas presentes nas histórias daquelas personagens. Mas, a riqueza que habita os fatos não é o suficiente para que haja um resultado realmente bom ou coeso. O que vale mesmo é acompanhar a dinâmica de Júlia e Cristina, tentar entendê-los e torcer por eles diante de todas as adversidades que eles encontram e ainda vão encontrar.
Direção: Marcos Pimentel
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