Quando Chegar a Noite, Pise Devagar acumula dois gêneros: o suspense e o terror. Para que filmes que se encaixam nestas duas categorias consigam ser efetivos, eles precisam, geralmente, combinar dois elementos chaves: a construção das personagens – pois é a daí que surge a sensação do espectador de proximidade com a narrativa e medo do que pode vir a acontecer ali dentro –, e a progressão da atmosfera de tensão.
Neste sentido, a diretora e roteirista Gabriela Alcântara é bem sucedida, de maneira geral. Ambientando o público na rotina de Caia (Mohana Uchoa), o estabelecimento da suspensão vem em pinceladas crescentes, nas quais pistas são entregues, juntamente com dúvidas sobre a origem do mistério que circunda a história. Caia se mudou para um apartamento antigo e passa a presenciar experiências estranhas e que assustam ela.
Neste universo, o extra-cotidiano se encontra aos discursos contemporâneos sobre questões identitárias, algo explorado crescentemente pelo audiovisual nacional. Ambos se misturam durante a projeção e resultam, no encerramento da trama, em um encontro dos dois. Dentro da sociedade, é possível ter nítido o fato de que existem largamente opressões para com grupos específicos da população e quem são os detentores dos privilégios também.
É através desta consciência que Alcântara compõe a sua obra. Caia, mulher negra, sáfica, de religião de matriz africana, se depara com preconceito no dia a dia, dentro do elevador de seu prédio. Caia é assediada pelo seu vizinho, que mesmo a vendo do lado de uma mulher, insiste em forçar uma aproximação. Estes elementos são pontuados de forma bem nítida, mas, ao mesmo tempo, há sutileza para imprimir tudo isto. Gabriela Alcântara procura ser incisiva e não deixar dúvidas do que está abordando, porém sendo mais visuais do que verbal.
A mise-en-scène é trabalhada para que as movimentações de seus atores expressem em todo o seu silêncio na fala os sentimentos amplos causados pela dinâmica racista, machista e lgbtfóbica do mundo. São nos olhares, nas pausas, nas respirações que o medo e a apreensão são notadas durante a sessão. Enquanto o enredo se desenvolve, as pontas são conectadas até que a metáfora certeira se materializa na tela. O caminho percorrido no curta-metragem leva a um clímax potente, no qual se vê este homem branco hétero cis como realmente ele pode ser: um parasita, uma força sobrenatural que precisa ser quebrada, que dilacera e persegue.
A escolha de como lidar com este estorvo, esta “assombração” é um dos pontos altos aqui. Seja pelos objetos de cena, pela decupagem, pela temperatura selecionada para consagrar este momento ou pelas marcas dos intérpretes, o desfecho de Quando Chegar a Noite, Pise Devagar é catártico. No entanto, é preciso ressaltar que o filme possui algumas quedas qualitativas, principalmente em seu segundo ato.
Algumas cenas de ligação ficam um tanto soltas no contexto geral, como quando Caia passa mal na recepção do seu prédio ou nos telefonemas longos que chegam para sanar algumas lacunas do roteiro. Elas fazem a dinâmica da produção se esgarçar e as atuações soam artificiais. Fica, assim, uma impressão de que estes instantes foram filmados muito depois das outras ou com menos apuro que o restante da obra. Nesta lógica, talvez fosse mais certeiro aprimorar as composições das personagens coadjuvantes ou a situação da moradora anterior do apartamento, por exemplo.
Enfim, não há uma resposta correta sobre o que poderia ter sido feito, mas é nítida a necessidade de entradas e saídas de sequências, para que não sobrassem ou faltassem questões para serem pontuadas ali. Ainda assim, é um curta que vale a pena ser assistido por conseguir fazer quem assiste se conectar com Caia e sentir suas angústias. É também, vale ressaltar, um convite metafórico, porém direto, da eliminação de sistemas opressores, representados por este homem escondido nos lares de tantas mulheres.
Direção: Gabriela Alcântara
Elenco: Mohana Uchoa, Aurora Jamelo, Ander Beça
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