Após 44 anos de espera, o fim do embate entre Laurie Strode e Michael Myers chegou aos cinemas. Halloween Ends estreou no dia 13 de outubro trazendo o aguardado encerramento da clássica franquia de terror. Como lançamento do terceiro longa-metragem da trilogia dirigida por David Gordon Green (O Que Te Faz Mais Forte, de 2018) e co-criada por ele e Danny McBride (A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, de 2021), o 13º filme mexeu com as estruturas da franquia ao trazer uma história inesperada em seu desfecho. Por conta disso, o filme não foi tão bem recebido pela crítica e, principalmente, pelos fãs.
Para entender a divisão de opiniões sobre a mais recente produção sobre o Bicho-Papão, é preciso revisitar seus dois antecessores. Dentre as inúmeras linhas cronológicas da franquia Halloween (ler mais sobre as cronologias no especial do site), a mais recente se estabelece a partir apenas do original e dos três novos filmes. Assim, Halloween (2018) funciona como uma requel – filme que recomeça uma linha temporal de uma saga/franquia, ao mesmo tempo que continua a narrativa a partir de algum dos seus capítulos anteriores -, continuando a jornada iniciado por John Carpenter e Debra Hill em 1978.
A escolha de ignorar os nove projetos lançados entre 1981 e 2009 foi essencial para que a ideia de Green e McBride se estabelecesse de forma concreta. A partir desse novo caminho, a narrativa seguiu a aura criada pela direção de Carpenter em Halloween: A Noite do Terror e entregaram um sucesso ao público. A estreia do primeiro longa-metragem da trilogia conquistou tanto a crítica quanto o público e garantiu que o projeto da trilogia se tornasse real, fazendo com que a Blumhouse desse a luz verde para que as outras duas sequências fossem produzidas. Na tentativa de levar essa energia do original até o final, a história criada se preocupou em expandir e renovar a franquia a partir de uma narrativa sobre traumas e marcas de feridas do passado.
De volta à Haddonfield
Ao pensar no primeiro episódio desta trilogia, o público recebeu uma produção que se preocupa com o retorno. É um longa que tem por objetivo esclarecer suas escolhas que geraram sua origem, reintroduzir os personagens conhecidos e apresentar os novos rostos. Além disso, Halloween (2018) concentra a sua trama central no trauma e o que ele pode causar nas pessoas próximas. Assim, o foco principal do primeiro filme é mostrar como Laurie passou esses 40 anos após os eventos da noite de Halloween de 1978 e de que forma isso interferiu em sua vida. Ou seja, o roteiro co-escrito por Green, McBride e Jeff Fradley mergulha num drama sobre uma família atormentada pelo passado.
Três gerações das Strode foram afetadas pelo legado violento deixado por Michael Myers. Laurie, por ter sido a vítima direta da Figura, carrega a culpa do sobrevivente, além de viver em constante alerta, no aguardo do retorno do seu algoz. Por conta das feridas de Laurie, sua filha Karen (Judy Greer), cresceu num lar onde a inocência e a infância deram espaço para treinamentos de sobrevivência e um clima de insegurança. Na tentativa de quebrar essa corrente de traumas, Karen se afasta da mãe, o que interfere diretamente na relação de Laurie com sua neta Allyson (Andi Matichak). Essa cama de gato trançada por problemas não resolvidos do passado é o pano de fundo do longa-metragem lançado em outubro de 2018.
Esse desenho caótico de uma família despedaçada pelo medo é a força motriz da narrativa que retoma a franquia. Além da alta qualidade e precisão do roteiro, as dinâmicas por trás dos traumas das Strode complementam a narrativa. Assim como Laurie, o espectador se vê 100% em alerta a todo tempo, esperando que Michael apareça no canto da tela, preparado para ceifar mais vidas, mas essa insegurança e paranoia não para por aí. Uma vez que o público toma dimensão do que aconteceu com Laurie, a pergunta que fica é o que será dos sobreviventes dos eventos ainda mais violentos de Halloween (2018).
Com sequências de mortes surpreendentes e cada vez mais brutais, o espectador se choca com a força devastadora dos novos acontecimentos em Haddonfield. A contagem de corpos de Halloween (2018) supera a do filme de Carpenter e a antecipação para o confronto com Laurie só cresce. Quando é chegada a hora dessa luta cara a cara, o fã não fica decepcionado com uma sequência final tensa até o último minuto. A direção de David Gordon Green é poderosa na condução do pavor e da surpresa, ainda que não seja sutil e sugestiva como a do criador do filme original.
Por conta desse cenário de sucesso, as expectativas se tornaram estelares para seus sucessores. Com uma marca de mais de 255 milhões de dólares arrecadados, Halloween (2018) elevou a exigência dos fãs para outro nível, agora que o público teve o vislumbre de um filme consciente de seu legado que provou ser capaz de se aproximar das sensações causadas pelo original. A partir de agora, o espectador estaria contando os minutos para ver o que os próximos capítulos da trilogia guardariam de surpresa.
O legado de Michael
Depois de um final eletrizante – e que, para muitos fãs, poderia ter sido a conclusão da história do Bicho-Papão -, Halloween Kills: O Terror Continua (2021) tem a difícil missão de começar a sua jornada de uma forma tão apoteótica quanto o encerramento do seu antecessor. Como esperado, esse tipo de expectativa tão elevada não é o ideal para uma produção ser construída. Para dificultar ainda mais o processo do segundo filme, a pandemia de covid-19 teve seu boom na época das gravações, fazendo com que o cronograma inicial da produção mudasse por completo.
Com os atrasos e as novas dinâmicas vindas da pandemia, o projeto teve a sua estreia postergada em um ano e acabou sendo lançado tanto nos cinemas, como pelo streaming Peacock, nos Estados Unidos. Apesar dos fatores externos que tornavam ainda mais difícil a entrega da produção, a ideia para o capítulo dois sempre esteve clara para os co-criadores da trilogia. Halloween Kills se preocupa em descrever o outro lado da moeda sobre os ataques de Michael.
Qualquer evento brutal deixa marcas numa comunidade. Seja ele em grande escala ou não, assassinatos como os cometidos por Michael Myers não poderiam deixar de respingar na cidade. Esse reflexo das ações da Figura vão além da memória e da criação de um mito assustador, mas também deixou feridas abertas em Haddonfield. Não foi só Laurie e sua futura família que se viu marcada naquela noite de 1978, mas toda a cidade. E essa é a missão de Halloween Kills: explorar a relação entre os traumas vividos pela cidade e a violência que isso reverberou na pacata Haddonfield.
Diferente do primeiro filme que foca nas três gerações das Strode, Halloween Kills vai mostrar outros personagens que tiveram as suas vidas transformadas por conta de Myers. Os fãs podem descobrir como o encontro com Michael mudou a vida de personagens de 1978, como Tommy Doyle (Anthony Michael Hall), Lindsey Wallace (Kyle Richards), Leigh Brackett (Charles Cyphers) e Marion Chambers (Nancy Stephens). O retorno não apenas dos personagens mas dos atores e atrizes que os viveram há mais de 40 anos cria um efeito nostálgico nos fãs, o que ajuda a narrativa.
Além do retorno deles, o espectador passa a entender melhor a relação de outros personagens de Halloween (2018) com os eventos de 1978, como Cameron (Dylan Arnold), ex namorada da Allyson, que é filho de Lonnie Elam (Robert Longstreet), um menino que fazia bullying com Tommy e foi perseguido pelo Bicho-Papão. Outro que teve sua relação direta com a Figura esclarecida em Halloween Kills foi sobre Frank Hawkins (Will Patton). O policial que é atacado no primeiro filme da trilogia foi um dos responsáveis por prender Myers na noite de 1978 e os eventos daquela noite ainda o assombram. Dessa forma, o longa tenta se aproximar do público por trazer uma narrativa focada em indivíduos e na comunidade, mas a recepção disso não saiu como esperado.
Apesar de entender a escolha de aprofundar as narrativas sobre traumas que vão além de Laurie e sua família, isso acabou interferindo em outros pontos da narrativa. Como o roteiro de Halloween Kills segue diretamente os eventos do seu antecessor, a noite de Halloween de 2018 soa como algo interminável. A sensação que fica no espectador ao ver a extrapolação da história central (o embate entre Laurie e Michael) é de que a produção está se estendendo demais para que consiga durar três filmes e lucrar cada vez mais.
Um dos principais argumentos na crítica a Hallloween Kills é a ausência de Jamie Lee Curtis (Entre Facas e Segredos, de 2019, e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, de 2021). A scream queen que ajudou a construir o sucesso da franquia é deixada de lado por quase todo o filme, tendo uma participação quase inexistente. O filme se arrasta através da equação trauma + população = violência desenfreada e, ainda assim, a principal vítima disso não está presente, gerando incômodo no público.
O tortuoso caminho até o confronto final
Apesar de compreender o caminho que quiseram trilhar em Halloween Kills, a produção deixa para o capítulo final a difícil missão de contornar os problemas do seu antecessor. Além disso, Halloween Ends carrega a responsabilidade de amarrar tudo o que já foi feito e entregar o final que os fãs aguardam há mais de 40 anos. A última parte da trilogia alcança a expectativa dos fãs no quesito do confronto entre Laurie e Michael, mas tropeça em diversas escolhas até chegar em sua conclusão.
Assim como em Kills, Halloween Ends deixa uma das estrelas da história de lado por muito tempo. Desta vez, Michael foi o escolhido (equivocadamente) pela produção para ficar de escanteio enquanto a sua saga se encaminha para um fim. Nesta narrativa, o Bicho-Papão está desaparecido desde o final da noite sangrenta de 2018. Quatro anos se passaram e nenhum sinal de Michael Myers, mas isso não impede que Haddonfield crie um novo monstro para lhe assombrar.
Esse legado de pavor é o peso que a pacata cidade carrega desde o sumiço de Michael. O medo dele aparecer e repetir os horrores vistos em 1978 e 2018 faz com que Haddonfield se torne cada vez mais cruel. É assim que Corey Cunningham (Rohan Campbell) se torna o novo odiado da comunidade. Ao lado de Laurie, ele é a pessoa que os outros fogem na rua ou quem decide atacar por conta do seu passado. A jornada de Corey se confunde com a de Myers no momento em que os dois se encontram no esgoto e algo maligno que residia no jovem rapaz é despertado após ficar cara a cara com a Figura.
Corey, em boa parte do filme, passa a assumir o manto da violência de Michael (figurativa e literalmente quando ele passa a usar a icônica máscara do assassino por um breve tempo). Dessa forma, o roteiro de Paul Brad Logan, Chris Bernier, McBride e Green decide, nos momentos finais da franquia do Bicho-Papão, criar um substituto para ele. Para a surpresa de poucos, essa escolha não foi abraçada por boa parte dos fãs e, menos ainda, pela crítica. Essa versão de um “Michael Jr.” somada ao romance entre Corey e Allyson são os maiores algozes de Halloween Ends.
Do outro lado da equação está a personagem de Jamie Lee tentando se libertar da prisão que ela viveu nos últimos 40 anos. Então, em Halloween Ends, o público se depara com uma Laurie que refez a sua vida e está tentando seguir em frente. Paralelamente, ela tenta dar suporte para sua neta fazer o mesmo e não cair na mesma armadilha que ela caiu décadas atrás. A escolha de mostrar uma Laurie buscando melhorar é interessante e coloca o espectador num lugar de conclusão.
A jornada da personagem principal da franquia tem coerência e é interessante, mas isso é posto em segundo plano em comparação com o arco de Corey, por exemplo. Mais uma vez um capítulo da trilogia se vê refém de escolhas que não soam orgânicas para a franquia. Essa percepção sobre a história encabeçada por Green dividiu opiniões e fez de Halloween Ends o mais criticado entre os novos filmes. Apesar disso, o longa foi o número 1 nas bilheterias brasileiras e continua a arrecadar cada vez mais.
Os percalços da franquia não são capazes de impedir que os fãs tenham vontade de ver o desfecho épico de um dos maiores filmes de terror da história do cinema hollywoodiano. Ends, ainda que com inúmeras falhas, consegue entregar um final satisfatório para o arco de Laurie, além de dar ao público uma última luta épica entre ela e Michael. Quanto a extrapolação sobre Corey e o relacionamento dele com Allyson, esses são alguns dos exemplos dos desvios que a história toma para se alongar, reforçando a sensação de que tudo deveria ter acabado em 2018.
O fim de uma era
No final dessa jornada de mais de 40 anos, é inevitável pensar no que deu certo e errado. Ainda que o fã tente apreciar sua obra querida, escolhas narrativas ainda podem incomodar. Aqui, na trilogia que conclui a história de Laurie e Michael, existem caminhos que levantaram questionamentos ao público e à crítica. No entanto, apesar de não concordar com algumas dessas escolhas, ainda é possível enxergar o arco criado pela trilogia da Blumhouse como um produto coerente – ao menos a sua ideia.
Os longas-metragens são três grandes atos que dialogam sobre trauma, sobrevivência e medo. Em seu primeiro ato, a produção se preocupa em reconstruir o universo, o medo sobre a Figura e mostrar o quanto os traumas dominaram a vida das pessoas de Haddonfield. No segundo, a pauta passa a ser como o medo do Bicho-Papão dominou a vida de uma comunidade inteira, deixando ela cada vez mais paranoica, violenta e incapaz de superar os temores do passado. Por fim, o terceiro ato mostra que, mesmo com o passado supostamente morto (ou, neste caso, desaparecido), se o trauma não é superado, a pessoa ou o grupo vai fabricar ou arranjar um novo canalizador de suas ansiedades e pavores.
Analisando dessa forma, é evidente a coerência desta cronologia. Se comparado com a obra de Carpenter e Hill, é uma chance de aprofundar o mal encarnado que ficou conhecido em 1978. O verdadeiro problema foi o tempo que se levou para fazer isso. Três filmes foi um excesso. Apostar numa dilatação tão grande para uma história que daria, no máximo, dois longas foi o erro que afastou parte dos fãs da conexão desejada com o projeto da Blumhouse Productions em parceria com a Universal Pictures.
Além desse alongamento excessivo, deixar Michael e Laurie na geladeira (cada um em um filme) e dar evidência para subplots que nada mudaram na narrativa geral – como o romance entre Corey e Allyson – foram erros (quase) fatais. A produção recebeu críticas por conta dessas escolhas que, ainda hoje, não são bem vistas por parte do público. Apesar disso, em apenas duas semanas nos cinemas, Halloween Ends já faturou quase três vezes o seu orçamento e está cada vez mais próximo da bilheteria de seu antecessor.
Esse alvoroço gerado pela estreia do capítulo final é a prova viva de que a franquia Halloween se mantém poderosa. O fenômeno comercial ao longo das quatro décadas e 13 filmes mostra que o fã só deseja uma nova oportunidade de se assustar. O cuidado que se precisa ter, contudo, está no resultado entregue. Da mesma forma que o público sonha com um novo filme do seu personagem favorito, ele irá cobrar qualidade. Por isso que, apesar da longa vida, a franquia nunca fugiu das críticas ferrenhas do espectador. Mas, no fim da equação, os fãs de Halloween receberam o embate mais aguardado da história do cinema, pondo um ponto final nessa jornada de 44 anos.