Crítica (XIII Panorama): O Animal Cordial

Todos os dias, Inácio, um aparentemente pacato dono de um pequeno restaurante, engole todo tipo de “sapo” durante o trabalho. As queixas dos seus funcionários de um lado, a esposa impaciente ligando a todo instante do outro, toda sorte de clientes que demandam dele um atendimento profissional… Enfim, o personagem de Murilo Benício no longa de Gabriela Amaral Almeida aparenta ser um sujeito como outro qualquer que controla seus impulsos pelas regras da boa convivência social. Eis que seu estabelecimento é invadido por um grupo de ladrões e tal ato acaba sendo o estopim para Inácio revelar sua verdadeira natureza a todos os presentes, descortinando máscaras sociais que utiliza cotidianamente. Dali em diante, o que se vê em O Animal Cordial é um banho de sangue num misto de influências que bebem desde Quentin Tarantino aos irmãos Joel e Ethan Coen, com a temática da violência, seus protagonistas frios e psicóticos e uma lógica de funcionamento das coisas autofágica, como num delírio ou num sonho bizarro que concretiza os desejos mais secretos dos seus personagens.

O Animal Cordial é ambientado num único espaço, o restaurante de Inácio, lugar escolhido a dedo pela diretora e roteirista da história. O ambiente é catalisador de toda sorte de tensões sociais e interpessoais camufladas e norteado pela impossibilidade da situação ser diluída em outro espaço. Isso faz com que todos os personagens da história sejam inebriados por uma urgência da selvageria como forma de impor respeito e afirmar seu lugar. Do próprio Inácio que, friamente, deseja encontrar o mentor do assalto ao seu restaurante, passando por Sara, funcionária que lhe é “braço direito”, o cozinheiro Djair insatisfeito com as condições de trabalho dos seus colegas, chegando até Verônica, uma das clientes do estabelecimento que lá pelas tantas passa por um trauma testemunhado por todos. Aqui, o confinamento e um ato de violência manifestado no isolamento social da noite é o estopim para o estabelecimento de um código de conduta da “justiça pelas próprias mãos”, a terra sem lei de um faroeste cujos domínios são demarcados por um autêntico psicopata e cuja salvação parece estar nas mãos de uma personagem com danos psicológicos tão severos quanto os dele.

É certo que O Animal Cordial é cria de uma geração de cineastas que já se utilizava de um quadro de referências que os antecedia, se revelando como um filme que possui como referências obras que em si já são repletas de citações. Como mencionei, uma típica cria de uma geração de cinéfilos do século XXI. Não há deméritos nisso, mas a trama, suas temáticas e seus aspectos formais podem passar uma sensação de déjà vu.

Dominam no longa o esmero com que a diretora e roteirista observa os pontos de tensão da história, cativando o interesse do espectador sobretudo quando o foco é Inácio e Sara, personagens brilhantemente bem defendidos por Murilo Benício e Luciana Paes. Benício cria em Inácio um sujeito frio, de gestos controlados, que gradualmente demonstra uma insuspeita habilidade para orquestrar os atos bárbaros que tomam conta do seu restaurante, interrogando suspeitos, mantendo-os reféns, se antecipando aos movimentos dos seus oponentes… O ator tem um desempenho propositalmente comedido ao levar seu personagem para uma zona híbrida e equilibrada de impulsos agressivos  muitas vezes contidos e gestos extremamente calculados. Ao mesmo tempo, Paes traz um dos arcos mais densos e transformadores de O Animal Cordial, dando conta exemplarmente das diversas camadas da sua personagem, sobretudo quando a mesma entra em processo de auto-análise. Assim como Inácio com as demandas do seu próprio restaurante, Sara entra em ponto de ebulição ao lidar com o comportamento dominador do seu chefe, passando a questionar sua submissão quando interpelada pelo colega de trabalho Djair, vivido por Irandhir Santos, que aliás, também está ótimo no filme.

Com diálogos que não necessariamente seguem uma lógica concatenada de fatos, mas que em suas “esquisitices” e uma certa dose de sinceridade exibem humor num cenário tão perturbador e sanguinolento, O Animal Cordial é um filme de execução acertada. Pode passar uma sensação de reiteração para muitos ao suceder exemplares que tinham referências semelhantes às suas, obras que possuem um interesse por esse lado obscuro da natureza humana, mas utilizam a ironia e o humor negro como chave de comunicação com o público, funcionando ora como um delírio cinematográfico que instiga espectador, ora como um incisivo relato sobre os meandros conturbados do comportamento humano.

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